Um convite a passar pela palavra: setembro amarelo e suicídio

O suicídio é um ato praticado quando alguém sente que a única saída para o sofrimento é deixar de existir, assim rompendo laço com o outro e com o mundo. Costuma haver algum tipo de conflito insuportável (sem saída) ou sentimentos de desesperança. Há suicídios que se misturam com questões políticas e econômicas que também podem levar alguém a uma depressão ou desespero profundo. 

Como disse Lacan (1988), explicando de uma forma leiga, a vontade de morrer, de destruir (até mesmo auto destruir-se) é também uma vontade de criação, de recomeçar do zero, lugar onde desejo de vida e o desejo de morte estão articulados num mesmo plano como duas faces da mesma moeda.

Karl Menninger coloca algo desse paradoxo em seu livro ‘’O homem contra si próprio’’ (1938) ao dizer que o suicídio é o ponto de convergência de três dimensões da morte: morrer, matar e ser morto. Ou seja, pode haver o desejo de morrer, mas também o de matar (algo em nós ou o Outro em nós). Sendo assim, é possível que um suicídio seja também um “assassinato”, no sentido de que também abrigamos aspectos de outras pessoas com quem nos relacionamos, como se fôssemos habitados por elas em alguma parte nós mesmos. Podemos ser vítimas de nossos próprios pensamentos e julgamentos, mas que são ao mesmo tempo advindos de uma referência maior que nos habita, e que podemos querer simbolicamente “matar”.

Há também suicídios onde podemos dizer que a pessoa que se matou foi, na verdade, assassinada, incitada ao ato, seja por abandono do Estado (suicídio por questões materiais ou de extrema violência e injustiça social e econômica) ou por qualquer tipo de cenário onde houve, literalmente, incitação alheia ao ato; vale lembrar a excelente entrevista do psicanalista Mario Corso, que perdeu um jovem paciente adolescente para o suicídio, na qual Corso expõe que, no caso deste paciente, houve sim um “assassinato por incitação ao suicídio”, feito por participantes de uma comunidade virtual que seu então paciente frequentava online.

Mas enfim, quê pode um psicanalista nesse contexto de sofrimento? Isso vai depender da composição de cada sofrimento, mas podemos dizer que o sofrimento de origem subjetiva é o recorte que o psicanalista poderá tratar. 

A psicanálise pretende escutar a dor e a tragédia do outro e aposta na passagem pela palavra como uma das formas de tratamento da angústia e mal-estar. O psicanalista é aquele que busca saber mais sobre essa dor, sem querer calá-la, porque entende que, ao querer saber disso, abre-se a possibilidade do sujeito colocar em palavras aquilo que está insuportável e narrar seu sofrimento na frente de uma companhia que está verdadeiramente interessada em reconhecer e validar sua dor e seu conflito, sem julgamentos morais ou religiosos.

Parafraseando Clarice Lispector, falar é uma maldição e também onde mora uma possibilidade de salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Falar é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fio o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Falar é também abençoar uma vida que não foi abençoada. No mínimo, falar confere alguma dignidade ao ato daqueles que se decidem pelo ato da morte decidida.

Pode parecer engraçado e caricato a imagem do psicanalista que pergunta toda hora: “e como você lida com isso?”, mas essa é a pequena grande pergunta que precisa ser feita quando queremos, verdadeiramente, escutar alguém – ainda que seja sobre querer morrer. A partir daí, muitos movimentos e manobras são vislumbradas caso a caso: não no sentido de tentar convencer a pessoa a desistir de sua ideia, mas no sentido de convidá-la a uma experiência de análise.

O filme de Ensina-me a viver (Harold and Maude, 1971) nos propicia reflexões acerca da vida, da morte e do suicídio, sem apresentar uma visão moral ‘’preto no branco’’, mas sim uma visão dialética, ao nos colocar em contato com personagens que, diante da vida, mas sempre em diálogo com a morte, vão construindo sentidos a respeito de como viver a vida – ou o fim dela.

A sinopse é: Harold, rapaz de 20 anos obcecado pela morte, passa seu tempo indo a funerais e simulando suicídios. Um dia conhece Maude, uma senhora de 79 anos apaixonada pela vida. Eles passam muito tempo juntos e, durante esta intensa convivência, ela o apresenta novas formas de pensar na vida e estar no mundo. Apesar de otimista, o filme não deixa de tratar o tema suicídio de maneira ética, complexa e múltipla, como se vê no desenrolar da narrativa…

É fundamental procurar saber, em qualquer paciente, como ele lida com seu mal estar. Se um paciente apresenta ideação suicida, é importante que o psicanalista consiga escutar e queira saber mais sobre como e com o quê esse pensamento se articula. Por exemplo, no filme, as cenas suicidas de Harold se repetem sempre no mesmo contexto e estão associadas a personagem mãe de Harold. O personagem lida com suas questões literalmente querendo morrer, repetindo cenas suicidas. Podemos dizer que ele vivia um repertório pouco transformativo, tanto que no filme o que temos é uma ‘’série’’ de ensaios suicidas. Mas por quê Harold gostaria de matar a si mesmo? Poderia ele se tomar como objeto e agredir a si mesmo, ao invés de agredir (leia-se: direcionar algo) ao objeto de sua frustração, a mãe? É uma leitura possível, que se fundamenta em Freud (1917[1915]).

Todavia, seria essa seria a única possibilidade de jogar o jogo da vida tendo sua mãe presente?

O mundo de Harold começa a expandir e o filme sai da monotonia de cenários e cenas quando surge a personagem Maude, que também tinha o hábito de frequentar funerais de desconhecidos. Ao mesmo tempo em que eles têm algo em comum, seu estado de espírito de  é radicalmente diferente; se Harold trajava roupas pretas, como todos os enlutados ali presentes, Maude trajava roupas coloridas e chamativas. Além de Maude, na cena também avistamos uma criança com roupas coloridas. Ela e a criança teriam algo em comum…. Como nos lembra Dunker e Thebas (2019) ‘’quando a criança chega a este mundo, ela não se comporta imediatamente como parte dele. Ela estranha o mundo, como estranha a própria mão quando descobre que ela é sua. Quando desiste de perguntar por quê?, sua perplexidade declina e ela se torna um de nós”. Para a criança e para Maude, ainda é possível se desvencilhar de consensos e universalidades, criando uma maneira única e singular de viver a morte. Elas não se diluem na multidão. Talvez Harold vá a funerais para observar melancolicamente o fim da vida, lembrar-se que um dia ele estará lá descansando e em paz, como ele deseja até então, já que não vê outros modos de ser e de lidar com a vida e seus conflitos.

Cheia de vida e interesses, Maude chegara em sua vida com muita energia, curiosidade, libido, pulsando vida e altos papos; ao contrário da mãe de Harold, Maude se interessa até mesmo por saber de suas ludicidades, como que tipo de flor ele gostaria de ser. Ela é puro encanto. Diz que gosta de observar as coisas crescerem [“I like to watch things grow”], as plantas e o ciclo da vida. Transformava qualquer problema em diversão, não havia tempo ruim, tudo era leve, inclusive infringir a lei, fugir de um policial, roubar um carro… Ela era criativa, não tinha nada que a deixasse aflita, sempre encontrava saídas as mais divertidas e leves possíveis, e os olhos de Harold brilhavam olhando para o que essa senhora com uma tatuagem de quem foi vítima de Auschwitz no braço conseguia fazer com a vida para torná-la mais interessante e extraordinária. Ele, que não conseguia lidar com a vida, ele, que só queria morrer [ou matar o o outro em si mesmo?] sempre quando algo lhe incomodava. Que avesso dele era essa mulher! 

Até certa parte do filme, ambos os personagens são retratados com personalidades totalizantes e caricatas, e portanto, até idealizadas: uma é totalmente vida e o outro é totalmente morte.

Na cena da arvorezinha, Maude dá uma rasteira na situação com o policial – que poderia ter cancelado seus planos – mas a vida era mais importante do que cumprir a lei. De novo, ela leva Harold em direção a uma jornada de muita libido, de muito desejo de fazer algo viver dentro e fora dela, como uma arvorezinha. Com Maude ele não queria morrer, ele não precisava fugir. Com esse outro ele era fluido. Estar com sua mãe não era possível até essa senhora aparecer. Harold vai se transformando e reinventando sua relação com a mãe, com quem passa a ser possível lidar, de alguma forma, de algum jeito. Seu sofrimento não deixara de existir, sua mãe continuara agindo da mesma forma, no entanto, ele reaparece cada vez mais como sujeito, e cada vez menos se toma como objeto no relacionamento com a mãe.

No final do filme, que espero não estragar, me parece que ele introjeta Maude, como se ela passasse a viver dentro dele e o que ela buscara transmitir foi bem sucedido, transformativo para Harold. Maude (não ela em si, mas ela como efeito) foi parte da produção de um grande giro nesse personagem, sem precisar se quer conhecer ou falar com a mãe do jovem. Como um psicanalista, ela propiciou um efeito no posicionamento de Harold e em seu repertório para lidar-com-a-vida, suficiente para interromper sua série mórbida, abrindo-o para o novo, não mais a repetição, mas a criação.

Para a psicanálise, não é tão interessante falar sobre alguém que se matou ou que pensa em se matar como vítimas a serem salvas. Vemos alguém que não suporta ou que não suportou alguma falta, e apostamos que talvez esta possa vir a deixar de ser uma questão fechada, podendo ser ressignificada, manejando esse sofrimento e dor em análise. Ao contrário do ato, que é uma ‘’via-curta’’, buscamos privilegiar uma “via longa” que passe pela utilização da linguagem e da busca de sentidos.

É pela linguagem que o suicida pode, talvez, encontrar alternativas ao ato. Nas sessões de análise poderão ocorrer muitas mortes, porém simbólicas; mortes de ideais, de imagens, de expectativas, de vaidades… Através da linguagem, matar e morrer não é limitador – muito pelo contrário; cria e transforma a vida daquele que fala.

 

Patrícia Andrade

Psicanalista e psicóloga, aprimorada em Saúde Mental pelo Instituto A Casa e membro da rede Inconsciente Real

 

Referências bibliográficas

Brunhari, M.V; Darriba, V.A.  Não te matarás: suicídio, prevenção e, psicanálise. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372010000200009

Dunker, C.; Tebas, C. O Palhaço e o Psicanalista. Editora Planeta, 2019.

FREUD, Sigmund. (1917 [1915]). Luto e melancolia. In: FREUD, Sigmund. Obras Completas. v. 14. Rio de Janeiro: imago Editora, 1969.

Coutinho, A. H. S.. Suicídio e Laço social. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952010000100008

Caravelli, S. A. L.  A passagem ao ato suicida e seus antecedentes […] Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009.

Entrevista Mario Corso. http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG81582-9556,00-HA+UM+CENTRO+DE+VALORIZACAO+DA+MORTE+NA+INTERNET.html 

Ensina-me a viver, sinopse http://www.adorocinema.com/filmes/filme-59143/

 

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