“Olha só doutor, saca só que genial
Sabe a minha identidade?
Nada a ver com genital”
Linn da Quebrada
Os gêneros masculino e feminino podem ser definidos a partir da portabilidade orgânica de pênis ou vagina?
No webinar “Transgeneridade e Psicanálise”, organizada pela rede Inconsciente Real, a psicanalista Letícia Lanz* responde de maneira enfática: não! E explica o porquê: o gênero (e também o sexo) é “uma produção discursiva, normativa e normalizadora, que faz com que indivíduos que tem pênis se enquadrem como homens e que tem vagina se enquadrem como mulheres”.
Porém, essa discursividade está longe de dar conta da complexidade das questões de gênero. O binarismo homem/mulher, segundo ela, não seria o suficiente para abarcar as diferentes possibilidades de se pensar e viver o gênero.
Ela nos convoca ao questionamento: “o que faz você acreditar que é homem ou mulher?”.
Você poderia tentar responder dizendo que acha que é homem porque joga futebol, transa com mulheres, não usa saia ou maquiagem. Mas, isso não seria o suficiente, porque se poderia contra-argumentar que há mulheres que jogam futebol, fazem sexo com outras mulheres e também não usam saia ou se maquiam. Ah, mas você não ficaria suficientemente convencido com esta argumentação e rebateria com a afirmação: “eu acredito que sou homem porque tenho pênis”. Com isto, você nos lançaria no cerne da discussão: portar um pênis não significa necessariamente que a pessoa se identifica ao gênero masculino.
Uma pessoa pode muito bem ter um pênis, porém, se reconhecer como mulher; inclusive ela pode não se identificar nem com o gênero masculino nem com o feminino. A ideia aqui é que o gênero transcende o órgão sexual reprodutor, deixando-o para trás como suposto definidor, a partir da constatação de que as lógicas “se tenho pênis, logo sou homem” e “se tenho vagina, então mulher” são construções sociopolíticas que reconhece apenas dois sexos e dois gêneros como possíveis.
Letícia Lanz afirma: “a sociedade escolheu o sexo para catalogar o ser humano, é uma escolha política”. E quais as consequências dessa escolha sobre o sujeito?
A palestrante afirma que se pode elencar três formas da sociedade lidar com as pessoas que não se enquadram no binarismo de gênero ou que o transcendem: pela patologização, judicialização e condenação religiosa (a ideia de pecado). A patologização diz respeito a um movimento social, encabeçado pelo campo médico, de categorizar os sujeitos como doentes, que necessitam de um tratamento para corrigir o seu desvio da norma. No âmbito judicial, a sua transgeneridade é usada como justificativa para a criminalização dos sujeitos, ainda que de forma escamoteada. E, por último, a ideia de que a pessoa que vai na contramão do binarismo, ou o transcende, estaria em pecado mortal, condenado em uma perspectiva religiosa.
Não podemos deixar de destacar que, neste cenário, o sujeito está a todo momento sendo bombardeado por discursos e, consequentemente, por ações concretas que o relegam a um lugar de exclusão, de marginalidade, considerando-o como doente, criminoso e pecador. Isso tem graves consequências sociais e psíquicas, como aponta Letícia, desde a impossibilidade de trabalhar em determinados lugares, o distanciamento de familiares e amigos e o preconceito vivido nas ruas e no trabalho, o que gera um sofrimento psíquico significativo que pode ser constantemente alimentado nos diferentes ambientes que o sujeito frequenta.
Para poder lidar com essa patologização, judicialização e condenação religiosa, a psicanalista nos diz que há pelo menos quatro estratégias utilizadas pelos sujeitos: enquadrar-se na norma; ficar no armário; inventar subterfúgios e resistir à norma. A primeira estratégia diz respeito a se submeter à norma vigente, tornando-se cisgênero, sem uma reflexão sobre sua escolha de gênero. A segunda seria ficar no armário: embora sabedor de sua transgeneridade, o sujeito se impediria de expressá-la e de vivenciá-la. A invenção de subterfúgios, terceira estratégia, seria encontrar formas de poder viver sua transgeneridade em momentos específicos, porém não a incorporando de fato em sua vida cotidiana. A quarta estratégia, talvez a mais difícil de ser empreendida, em função de toda a força social contrária à sua colocação em prática, seria a resistência, ou seja, poder assumir para si e para os outros a sua transgeneridade, vivenciando-a nos diferentes âmbitos da vida.
Vale destacar que todas estas estratégias são resultantes da normatização sociopolítica que prevê uma relação natural entre órgão sexual, sexo e gênero, e que pune quem a questiona. Letícia claramente faz uso da quarta estratégia, ainda que a possibilidade de a colocar em ação foi, como ela nos contou, uma longa construção forjada com muita luta interna e externa. A sua fala é uma subversão da norma, visa trazer dignidade e existência a muitos que não se adequam a ela. É uma fala transformadora, não sendo possível sair de sua palestra sem que algo tenha se modificado dentro de você sobre a questão da transgeneridade.
Como um belo presente, ainda seguro em minhas mãos o seu questionamento: o que faz você acreditar que é homem?
Gabriel Bartolomeu
Psicanalista, psicólogo e mestre em psicologia pela USP, membro da rede “Inconsciente Real” e do grupo “Estudos LGBTQIA+ e Psicanálise: (des) encontros”
*Letícia Lanz é Mestra em Sociologia (UFPR), Psicanalista (SPOB/Sociedade Sul Brasileira de Psicanálise) e Especialista em Gênero e Sexualidade (UERJ). Autora do livro “O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero. Uma introdução aos estudos transgêneros” (Editora Transgente).
Assista abaixo o webinar “Transgeneridade e Psicanálise” com Letícia Lanz: