“Como contadora de histórias reais, a pergunta que me move é como cada um inventa uma vida. Como cada um cria sentido para os dias, quase nu e com tão pouco. Como cada um se arranca do silêncio para virar narrativa. Como cada um habita-se.”
Eliane Brum
Dia internacional da visibilidade trans (travestis e transsexuais): uma data para trazer a vez das pessoas da sigla T do LGBTQI+. Essas pessoas são vítimas de crimes de ódio, estigma e preconceito brutal. O dia existe como uma data para reivindicar direitos e políticas públicas, além de viabilizar suas falas, vozes e debates. Não queremos focar aqui na violência e nos aspectos negativos inesgotáveis, mas convidar cada leitor a acompanhar uma reflexão.
Transexuais e travestis são pessoas de corpo e alma que habitam, estigmatizadas, um lugar ruim e perigoso no imaginário social, o qual deriva de interesses e limitações biopsicossociais, religiosas e políticas. Num pólo, temos essas pessoas que se identificam como transexuais; no outro, temos pessoas que se identificam com a norma identitária idealizada pela sociedade, a saber, a de um ideal de “gênero inteligível”, em que feminino-mulher e masculino-homem correspondem exclusivamente a órgão sexual vagina e pênis, respectivamente. Ao contrário da pessoa heterossexual e cisgênero, que re-produz e repete o sujeito esperado pela norma vigente, a pessoa trans se subjetiva para além das bordas instituídas.
A reivindicação de direitos e políticas públicas é importante porque a política nada mais é do que “aquilo que viabiliza certos modos de vida em detrimento de outros, onde haveria vidas que valem mais a pena do que outras, que seriam corpos pesados, que encarnam a norma e gozam da condição de humanos” (Moreira). As vidas que fazem borda, como a transexual, por exemplo, ficam marginalizadas, excluídas e negadas; como efeito disso, mais vulnerável à morte e violências. Com a teoria queer, Judith Butler provoca e incomoda os movimentos de lutas identitárias feministas e propõe que pensemos “quais formas novas de política surgem quando a noção de identidade como base comum já não restringe o discurso sobre políticas feministas?” propondo menos uma imposição de uma unidade em um grupo e mais um diálogo entre fragmentos para um bom processo de democratização. O ideal da autora é pensar ações políticas “que rompam as próprias fronteiras dos conceitos de identidade”.
A ideia do que é humano é definida de forma hegemônica; o corpo é defendido como uma “materialidade estável e inquestionável”, ao mesmo tempo em que existiram no passado e na contemporaneidade sujeitos que reivindicam (ou reprimem) novas formas de existir e de viver, sem partir de uma distribuição urinária, no caso da transexualidade, ou sem partir de uma orientação sexual absoluta, no caso da homosexualidade.
Uma contribuição do psicanalista francês Jacques Lacan (1972-73) foi pensar a diferença sexual através dos modos de gozo – como cada um lida com a falta inerente à condição humana – em termos de feminino e masculino (mas sem relação alguma com os atributos do sexo biológico). Ou seja, ter um órgão sexual do sexo masculino ou feminino não necessariamente significa que o sujeito goze numa posição masculina. Mas o que seria gozar numa posição masculina? E feminina? E onde queremos chegar com esse papo?!
Essa teoria nos ajuda a pensar justamente o lugar ocupado pelo sujeito que goza de uma ou outra maneira. Muito resumidamente, a pessoa que goza numa posição masculina lida com a falta em maior conformidade com ideais universais, determinados, que valem para todos, ideais que definem “quem você é” por meio de objetos localizáveis, quantificáveis, representáveis, calculáveis. Já as pessoas que gozam numa posição feminina teriam uma afinidade maior com a falta e seriam menos capturadas pelas unificações, determinações, identidades-que-fazem-um… ou seja, é um gozo da ordem da indeterminação e da des-ordem, contrário às exigências normatizantes da cultura… mais opaco, portanto.
Não é novidade: aqueles que fogem de determinações e definições, ao romper com um universo plural de repertórios coletivos para lidar com a própria falta a ser, no mínimo chamam a atenção de muita gente, pois estão longe de se apoiar nos mesmos ideais e artifícios finitos que a maioria social. É como se esse sujeito dissesse que não acredita naquilo e naquele Outro que todos acreditam e obedecem. Por isso mesmo, causam admiração, espanto, ódio, inveja… A teoria queer (na qual se encaixam os transexuais, mas não só) não há uma figura de exceção capaz de ordenar os corpos e impor uma lei – cada um se inventa a partir de seus próprios referenciais, sem grandes compromissos com algo universal, o que tem produzido uma “proliferação de nominações, práticas sexuais e parcerias amorosas que reconfiguram e perturbam o campo da sexualidade, apontando para uma des-ordem no real do sexo – desordem no sentido de que há algo para além da ordenação fálica” (Naveau apud Moreira).
Bem, é a partir das identificações que nos constituímos, fazemos sintomas e laços com o outro. É também da relação delas com o mundo que surgem problemas e sofrimentos que levam muitos sujeitos a buscar uma psicanálise. As identificações, do ponto de vista político, tem o efeito de tensionar a política vigente em busca de visibilidade e direitos. Do ponto de vista de uma análise clínica, toda alienação excessiva em uma identidade – qualquer que seja – muito provavelmente será digna de uma desconstrução, diz Pedro Ambra. O psicanalista Christian Dunker também fala em alguns de seus vídeos no Youtube sobre a análise ser um processo de des-identificação. Esse processo é importante, pois possibilita efeitos benéficos ao eu e seu estar no mundo, à medida em que, ao diminuir a força das identificações que nos constituem, o efeito é sempre um menor aprisionamento nelas, revertendo uma cristalização do sujeito em identificações que só encontram a si mesmas e geram problemas como intolerância, autoritarismo, dificuldade de lidar com as diferenças.
A patologização do sujeito transsexual ainda acontece, mesmo na psicanálise, mas gostaríamos de colocar aqui nossa posição, que parte da premissa de que a ideia de quadro clínico não pode vir sem bom senso; todos os quadros clínicos (neurose, psicose, perversão) valem para todas as identidades sexuais e não carregam juízo de valor. São modos de funcionamento subjetivos. O diagnóstico é, antes de tudo, uma hipótese para conduzir o caso e o manejo das intervenções que faremos sob o sofrimento daquele que se dispôs a vir até nós, falar e ouvir a si mesmo. Ambra diz:
“Se a psiquiatria visa aplacar os sintomas, a psicanálise visa dar voz a eles compreendendo que não se trata de formações estrangeiras, alheias à pessoa, mas antes carregam (parte de) sua verdade. A psicanálise oferece, assim, um tratamento, mas nunca uma cura. É por isso que não há ‘cura trans’, assim como não há ‘cura cis’: se o sofrimento da pessoa está ligado a alguma dessas duas categorias, a psicanálise pode ajudar o sujeito a questionar o lugar que ele dá a sua identidade sexual, mas de maneira alguma direcioná-lo”
Podemos dizer que a identidade é uma invenção subjetiva, que pode ser aprovada pelo senso comum e sua flexibilidade-tolerância ou ser tomada como algo indesejado e subversivo. Invenções na identidade não costumam ser bem-vindas, principalmente se tocam em fragilidades humanas, identificatórias, religiosas ou políticas.
Por fim, algo escapar da norma vigente não pode ser uma desculpa para praticar violência e discriminação, do contrário, compactuaremos com discursos machistas, homofóbicos, racistas; discursos que tentam calar o diferente e que se colocam no lugar de dizer quem pode viver, como, e quem pode morrer e ser morto. Quem é humano e quem não é.
A linguagem é o recurso que temos para fazer laço com o outro, para criar narrativas sobre nós mesmos, interpretar o mundo, para lidar com o sofrimento. Deveríamos ser no mínimo tolerantes com as identidades, pois elas sempre apontam para algo que nos escapa, e que precisamos saber ler para poder lidar sem querer calar, diminuir, matar.
Patrícia Andrade
Psicóloga, psicanalista e membro da Rede Inconsciente Real
Referências bibliográficas
AMBRA, Pedro. A psicanálise é cisnormativa? Palavra política, ética da fala e a questão do patológico. Periódicus; n. 5 v.1 maio-out 2016 (pg 101-120)
AMBRA, Pedro. 2017 http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-157X2017000200004&lng=en&nrm=iso
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/1806-9584-2020v28n157698/4350
MOREIRA, M. M. O feminismo é feminino? Editora: Annablume; 2019.