Sonho que se sonha só: a interpretação dos sonhos e sua relação com as vivências coletivas

Diferentemente da crença ampla de que os sonhos revelam o futuro ou de que possuem um sentido universal baseado em símbolos, a psicanálise tem sua própria compreensão dos sonhos e, principalmente, uma forma específica de entendê-lo e usá-lo em seu método de tratamento. A publicação da “A interpretação dos sonhos” no ano de 1900 marca o início da psicanálise. Freud, baseado em sua escuta clínica e pesquisa, conclui que os sonhos são um acesso privilegiado ao inconsciente e que estes têm um significado. Significado esse, porém, ligado unicamente ao sonhador e sem universalidade em seu sentido [1].

Os sonhos e a psicanálise

No sono, aquilo que não está aparente nos pensamentos, o que está inconsciente, aparece. De certa forma, faz uma revelação, não do futuro, mas sim do passado e do momento atual. Isso acontece porque a energia que produz o sonho se liga, no inconsciente, aos pequenos resíduos de lembranças, de fatos e sentimentos do dia anterior ao sonho. Mas para que o sonho se forme é necessário também que essa energia esteja carregada de desejos infantis, recalcados e de natureza sexual, aqueles que quando em vigília são reprimidos pela consciência. O sonho estabelece uma ligação entre duas vivências, a infantil e a atual, busca remodelar o presente de acordo com o modelo do passado [2]. Logo, o sonho se inicia no presente, com pendências e reminiscências, mas vai até o passado buscar os desejos que se conectam com o que é particular para o sonhador. Todos os sonhos de uma mesma noite derivam do mesmo círculo de pensamentos e nenhum sonho é instigado por moções que não sejam egoístas, ou seja, se refere diretamente ao mundo daquele que sonha[1].

Na formação dos sonhos, as experiências vividas recentemente pelo sonhador servem de roupagens para que lembranças e pensamentos inconscientes possam chegar à consciência. Por este motivo, apesar do caráter revelador do sonho, seu sentido nem sempre é tão evidente. Seu conteúdo pode vir de forma invertida, negada, ou mesmo tão disfarçada que fica irreconhecível ao sonhador. Isso se dá por um mecanismo que Freud chama de distorção onírica, produto do trabalho do sonho e serve à finalidade da dissimulação, ou seja, do disfarce. “Os sonhos não se revestem da linguagem sóbria que costuma ser empregada por nossos pensamentos mas, ao contrário, são simbolicamente representados por meio de símiles e metáforas, em linguagens semelhantes às do discurso poético” [1 p. 210].

Os sonhos revelam o desejo do sonhador, portanto é comum sonhar que se está em uma cidade para a qual irá se viajar no dia seguinte, ou que se  está comendo algo que se gosta, ou mesmo realizando alguma grande conquista. Porém, existem também, além destes sonhos que fazem sentido, aqueles que não têm sentido e os desconcertantes [1]. Os sonhos ininteligíveis são realizações disfarçadas de desejos recalcados. E aqueles que apresentam muita angústia, para Freud, se dão quando o disfarce é insuficiente ou não está presente [1]. Mesmo nesses casos, em que o sonho não parece, de forma lógica, se destinar a realização de um desejo, na teoria Freudiana, ainda é interpretado desta forma. Já que, um sonho onde o sujeito é castigado, por exemplo, pode traduzir o desejo do sonhador de receber a punição por algo que possa ter feito. [3]

No entanto, em “Além do princípio do prazer”, Freud (1920) aborda os sonhos traumáticos, estes seriam, por sua vez, a única exceção à afirmação de que todo sonho é uma realização de desejo. Esses sonhos obedecem a uma compulsão à repetição, ou seja, se encontram a favor de uma captura e fixação psíquica de impressões traumáticas [3] onde mesmo aquilo que fez sofrer é repetido pelo inconsciente, apesar de trazer grande desconforto, insistem em se repetir.

Os sonhos e as vivências coletivas

Ao perceber que seus próprios sonhos se tornaram estranhos – tendo quase sempre como temática situações em que era baleada, torturada ou caçada, que estava se escondendo ou se encolhendo -, Beradt buscou saber se outras pessoas experimentavam o mesmo. Desta forma, entrevistou berlinenses exilados em Nova Iorque e pediu que falassem sobre seus sonhos na Alemanha nazista. O artigo “Sonhos sob ditadura” [4] foi publicado em 1943 com alguns registros de sonhos e conclusões sobre as semelhanças encontradas nos relatos.

De acordo com sua pesquisa, o tema da perseguição e da falta de liberdade eram centrais para os entrevistados. Entre os judeus, os sonhos ansiosos antecipavam, de certa forma, o futuro, seus sonhos estavam ligados a passaportes, documentos, vistos, coisas que seriam úteis num futuro próximo para se exilar e garantir sua sobrevivência [4]. Outra observação é que o complemento desses sonhos ansiosos são os sonhos que Beradt chamou de fantasiosos, aqueles que expressam o desejo natural das pessoas por igualdade e reconhecimento, seu anseio pelas coisas perdidas [4].

Os relatos recolhidos por Charlotte Beradt mostram a relação dos sonhos, como explica a teoria Freudiana, tanto com os resíduos diurnos e, dessa forma com contextos histórico-sociais, quanto com sua capacidade de trazer à mente aquilo que se encontra no campo do desejo inconsciente. Os sujeitos entrevistados estavam tentando lidar de diferentes formas com as situações vivenciadas que se apresentavam como algo incompreensível e fora de qualquer sentido anteriormente conhecido. Esse paralelo pode ser feito com a situação atual de pandemia através da compreensão de que esta situação, da mesma forma, inclui uma realidade que se impõe e rompe o cotidiano.

É possível supor que os sonhos na atual conjuntura também irão se relacionar com as vivências atuais, sendo por exemplo, mais comum sonhar-se com restrições quanto ao isolamento, precauções de contaminação, assim como ter sonhos que traduzam a tentativa de adaptação à nova rotina e de aceitação das perdas que vêm se impondo. Porém, mesmo que os sonhos tragam algo parecido em seu conteúdo, ainda devem ser tomados como algo próprio do sonhador. Vale lembrar, como dito anteriormente, que o sonho é sempre singular e íntimo, cabendo apenas a cada sujeito sua interpretação.

E como compreender então o significado dos sonhos? O sonho pede uma análise. Freud recomenda anotar de imediato aquilo que são associações ininteligíveis. Dividir o sonho em seus elementos e descobrir separadamente as associações ligadas a cada um desses fragmentos [1]. Dessa forma, na análise, o sonho pode ser compreendido pelo sujeito. Sem caráter místico, não é o psicanalista quem revela o significado dos elementos do sonho, mas o paciente que fala e associa suas lembranças a cada um de seus elementos sem censura. Pouco a pouco a mensagem do sonho vai aparecendo e cada elemento ganha novo sentido, às vezes mais de um sentido, já que, para cada sujeito, o sonho pode receber inúmeras interpretações.

Vivemos hoje coletivamente uma situação inédita. Pandemia, isolamento, falecimento de amigos e familiares pela COVID-19… Perdemos nossos cotidianos e a segurança de viver a rotina habitual, diante disso, cada um à sua maneira e sendo afetado de formas diferentes pelo momento atual está buscando reorganizar seu próprio aparelho psíquico. Através do sonho o sujeito elabora perdas e resolve conflitos de desejos, como, por exemplo, uma divisão entre fugir do perigo ou enfrentá-lo. Os sonhos podem ser, tanto expressões de desejos, como a revivência de traumas. Por isso, em alguns momentos, para cada sujeito, o sonho se torna mais angustiante, revelando as elaborações subjetivas com as quais cada sonhador precisa lidar. Um exemplo documentado de como podem se apresentar os sonhos em conjunturas traumáticas está descrita no artigo de Charlotte Beradt. No entanto, como o significado do sonho só poderá ser compreendido pelo sonhador, por mais que os sonhos possam se apresentar parecidos em sujeitos que vivem conjunturas análogas, o caráter singular do sonho permanece e somente pela análise do sonho se pode compreender seu sentido.

 

Luanda Chamarelli

Psicanalista, psicóloga e mestre em psicologia pela UFF, membro da rede Inconsciente Real e do grupo de estudos “Sonhos”.

 

 

Referências bibliográficas

DUNKER, Christian. Oniropolítica: nossos sonhos refletem o estado das coisas no Brasil. UOL, São Paulo, 08/05/2020. Blog do Dunker. Disponivel em: <https://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/05/08/por-que-estamos-tendo-sonhos-mais-intensos-e-marcantes-durante-a-pandemia/> Acesso em: 11 jun. 2020.

[1] FREUD, S. A interpretação dos sonhos. (1900). In: __. Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas de Sigmund Freud vol. V – Rio de Janeiro: Imago, 1996.

[2] FREUD, S. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905). In: __. Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas de Sigmund Freud vol. VII – Rio de Janeiro: Imago, 1996.

[3] FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). In: __. Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas de Sigmund Freud vol. VII – Rio de Janeiro: Imago, 1996.

RIBEIRO, Fernanda Teixeira. Tem tido sonhos estranhos na quarentena? Especialistas explicam o porquê. UOL, São Paulo, 25/05/2020/ Equilíbrio. Disponivel em: <https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/04/25/tem-tido-sonhos-estranhos-na-quarentena-especialistas-explicam-o-porque.htm?cmpid=copiaecola> Acesso em: 11 jun. 2020.[4] SILVA, Douglas; GOODMAN, Louise Marie. “Sonhos sob ditadura” de Charlotte Beradt. Em Tese, [S.l.], v. 23, n. 1, p. 242-248, mar. 2018. ISSN 1982-0739. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/12533/11057>. Acesso em: 11 jun. 2020.

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