Sonhar o sonho dos outros

“– Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.

— é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.

— Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.

— é uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.

— é uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.

— é uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.”
(…)

João Cabral de Melo Neto

 

Em 28.11.2020 a rede Inconsciente Real teve o imenso prazer de receber o psicanalista Paulo Cesar Endo, Professor Livre-docente do Instituto de Psicologia da USP e do Programa Interdisciplinar em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades do Diversitas – FFLCH/USP. Nesta apresentação, com o tema “Sonhar o sonho dos outros”, Paulo Endo organizou seu relato em torno da seguinte questão:

Como um contexto como o do Brasil e de outros lugares do mundo, atravessado por diversos acontecimentos traumáticos, afeta o nosso sono e o nosso sonho?

Para abordar sua atual pesquisa intitulada: “Inventários de Sonhos 2: sonhos de Pandemia”, o psicanalista percorre sua experiência prévia tendo trabalhado há mais de 10 anos com a questão da elaboração onírica, tanto do ponto de vista do que suscita a investigação metapsicológica, quanto no que suscita a possibilidade de continuar a sonhar a partir daquele que escuta o sonho dos outros. 

Como perito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, pelo Centro de Justiça de Direito Internacional, Endo atuou em 2008, aferindo as consequências psíquicas dos desaparecimentos forçados num caso específico da Ditadura Militar: A Guerrilha do Araguaia.

Em 2010 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu à Corte Interamericana uma demanda contra a República Federativa do Brasil, que se originou de uma petição apresentada em nome de pessoas desaparecidas no contexto da Guerrilha do Araguaia e seus familiares. 

Paulo Endo entende que a sentença brasileira do Supremo Tribunal Federal, aliada ao fato de militares terem sido anistiados nesse episódio, demonstra que a República Federativa do Brasil apoia o discurso e a prática da tortura e faz desta nação um dos países que mais torturam no mundo, na medida em que não teve coragem e ombridade  para impor uma castração a esta prática. Endo considera que isto traz consequências graves pois abre uma brecha para todo tipo de tortura, sobretudo nos cárceres, e um discurso que incita o ódio e a violência sem nenhuma forma de pudor. 

Dos 80 familiares de vítimas de desaparecimentos forçados pelo Brasil, Endo decide entrevistar 3 famílias moradoras de São Paulo. Criou-se com esses familiares um espaço de fala e escuta para que pudesse aferir, do ponto de vista psíquico e do ponto de vista das inscrições inconscientes, as consequências psíquicas de terem parentes e entes queridos desaparecidos. Para as demais famílias foram enviados questionários. 

Esse processo só foi possível porque o crime do desaparecimento forçado é imprescritível, não se sabe se a vítima está viva de fato, diferentemente dos crimes de práticas de torturas que prescrevem dentro de um prazo determinado.  Uma das perguntas importantes deste questionário era: “Você sonha com episódios associados ao desaparecimento? Narre o seu sonho. Há algum pensamento, interpretação ou associação que acha importante descrever?”

O tratamento que os pesquisadores deram ao material aí recolhido tomou como base o trabalho realizado para a criação do acervo de sonhos de ex-prisioneiros de Auschwitz e Birkenau, sonhos de vítimas do Apartheid, sementes que engendrarão a confecção de Relatos de Sonhos 2: sonhos na Pandemia. Além disso, na perspectiva adotada pelos pesquisadores se articulam diferentes contribuições: 

– debate fomentado no campo psicanalítico a respeito dos conceitos de sonho, trauma e sonho traumático, envolvendo a obra de Freud entre os anos 1900 e 1920 e os questionamentos e reformulações propostos por Sandor Ferenczi;

– literatura de testemunho, especialmente duas obras de Primo Levi: “É isso um homem?” e “Afogados e Sobreviventes”;

– literatura de Mia Couto, particularmente o que se pode apreender através de “Terra Sonâmbula” (1992), onde o autor aborda o processo de devastação que aconteceu em Moçambique a partir de guerras civis que atingiram toda a população, coagindo o país a permanecer em estado de vigilância. Em sua leitura de Mia Couto, Paulo Endo entende que esses episódios traumáticos de devastação causam uma paralisia do psiquismo, uma espécie de sonambulismo, algo que remeteria à ideia de uma terra que nunca dorme e nunca sonha; 

– “A linguagem do Terceiro Reich” de Victor Klemperer, linguista considerado judeu pelas leis nazistas, que registrou sua experiência nesse período em diários, relatando a rotina marcada pela passagem do consensual para uma experiência solitária na qual, como Paulo Endo pontua, o sujeito se reconhece fora do esteio de um sonho, ou de um devir compartilhado, correndo o risco de desencadear uma experiência de insanidade.   

Duas questões são destacadas por Paulo Endo a partir de seu caminho investigativo:

Como uma terra sonâmbula pode começar a sonhar contando os sonhos dos outros?

Qual é a relação entre a narrativa onírica e a produção testemunhal? A narrativa onírica pode ser considerada uma produção testemunhal quando é entendida como um efeito de algo traumático?

Paulo Endo e o grupo com o qual trabalha começaram a colher sonhos no Brasil em 2018, movidos pelo que ele caracteriza como “a retomada da ditadura a partir do fortalecimento da “milicianização”. Nesse contexto preocupante elaboraram o “Inventário de Sonhos 1”. Quando a pandemia teve início, organizaram o “Inventário de Sonhos 2”. O acervo atingiu 1200 sonhos.

Segundo Endo, os estudos sobre sonhos abundam no mundo; assim, a questão que lhe ocorria era: por que os psicanalistas não se apresentam nesses grupos? Embora reconheça que a narrativa onírica não ocupe, em muitas pesquisas, um campo importante como testemunho, sendo desmerecida, considerada desimportante, folclórica e até mesmo exótica, Endo considera que o formato das narrativas oníricas e seu correlato das narrativas testemunhais aparecem como efeito de uma experiência traumática muito dolorosa psiquicamente falando.

Endo constrói seu trabalho em rede, buscando articular suas investigações às de outros pesquisadores e grupos, psicanalistas ou de outros campos, dentro e fora do Brasil.  

Uma das perguntas que um integrante da rede do Inconsciente Real fez para Paulo Endo foi: como vocês pesquisadores, que são psicanalistas, tratam esse arquivo de sonhos? Acredito que não se trata neste material de algo a ser interpretado, é isso? Mas qual seria nesse caso a utilidade, para o narrador, de narrar um sonho para vocês?

Paulo pontua que a riqueza de um acervo é que ele consiste num ganho para a posteridade, possibilitando, justamente, a passagem de uma experiência singular para uma experiência pública e coletiva. Para os pesquisadores, por sua vez, os ganhos que um acervo como este traz são infinitos, pois os processos aí em jogo operam exatamente como o traumático, através de um resto que insiste e produz cultura:  poemas, canções e até mesmo Berlim, uma cidade memorial. A cultura é criada ao redor do traumático. 

Outra pergunta que veio do grupo foi: “Como seria este sonhar o sonho dos outros?”.

Paulo assinala que a equipe de escutadores de sonhos coloca suas aptidões oníricas a serviço de outras pessoas; ativa-se no escutador o material de pensamento que costuma ficar saturado no cotidiano que vivemos todos os dias. Trabalha-se aí o sonho como fantasia, dispositivo psíquico sublimatório que ressignifica o trauma do instante e nos coloca em outra dimensão onde é possível a inscrição de um porvir. 

Finalizando, relembremos com Shakespeare que: “O passado e o porvir estão, ambos, recobertos pelo pó e pelos amorfos da deslembrança.” Esquecer, jamais! Ressignificar, sempre que possível!

 

Lia Rudge

Psicanalista, psicóloga, membro do Departamento de Psicanálise com Crianças e do NAS (Núcleo de Assistência Social) do Instituto Sedes Sapientiae, membro da equipe do Trapézio-Grupo de Apoio à Escolarização. Membro da rede Inconsciente Real e integrante do grupo de estudos “O conceito de sonho em Freud e Lacan”

 

Siona Creimer Porro

Psicanalista, psicóloga clínica e hospitalar, participante das Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano/SP, membro da Rede Inconsciente Real, integrante dos grupos de estudos e pesquisas em “O conceito de sonho em Freud e Lacan” e “Psicanálise e Feminismo”

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