Sobre a transitoriedade da pandemia

“…viver não é coragem, saber que se vive é a coragem.”

A paixão segundo G.H. – Clarice Lispector

 

Das atitudes diante da pandemia, nenhuma parecia me caber. Incomodava-me por demais os incansáveis esperançosos, alegando que disso tudo deveríamos tirar ensinamentos. Também não me parecia viável sucumbir ao desespero da finitude. Ora, era claro que disso tiraríamos algo! Era mais claro ainda a situação horrorosa e catastrófica que estávamos vivendo. Negar tudo isso me parecia inocente. Mas também tratar tudo isso com cinismo ou pessimismo não parecia um bom caminho. Não me estranhava a ideia de que o processo de elaboração passasse também por essas posições, mas incomodava-me delas serem as únicas.

Acordei por dias com a sensação de que era preciso apenas seguir. Então, segui. Meu trabalho pôde migrar para online, e assim o fiz. Falei com quem pude e quis, online. Fiz análise, online, a minha própria, e como a fiz! Segui na vida online, ainda que ela me cansasse demais. Os entusiastas do online também me incomodavam. Vejam, eu admirava intensamente o empenho desses pela construção de possibilidades, mas o online, dessa forma atabalhoada que fomos obrigados a aderir, me pareceu sempre muito mais um recurso do que uma solução.   

A solução me parecia ter que ser construída em cada um. E me incomodava também que fizessem uso desse “cada um” para burlar regras, ser irresponsável nas condutas, enganar aqueles com menos acessos… em suma, praticar genocídio. A solução singular nada tem a ver com egoísmo, nada tem a ver com individualismos. Tem a ver com poder localizar o Outro, e concomitantemente, se localizar em si. Ou seja, a solução singular tem a ver obrigatoriamente com se localizar diante do mundo à nossa volta. E só a partir daí que podemos, então, falar de uma construção subjetiva genuína, essa que passa pelo desejo de cada um, e não pelo ego de cada um. Desejo não é vontade. Desejo não é querer. Desejo não é nem exatamente desejar. Desejo é, talvez, aquela mola propulsora que nos faz estar vivos, e que dá certo sentido pra isso.

O meu, particularmente, tinha a ver com duas coisas: estar com quem eu amava (conforme os protocolos de saúde); e recorrer à psicanálise. Na análise, nos atendimentos e nos estudos. Cheguei a conclusão que estávamos, então, vivendo certo luto, e sobre isso gostaria de brevemente discorrer.

Freud publica, em 1917, o artigo “Luto e melancolia”, em que diferencia justamente esses dois. A primeira importante afirmação é a de que “o luto não é patológico”. Ou seja, todos nós, estamos e vamos passar por esse processo psíquico. Não apenas diante das situações de morte, mas sempre que precisarmos lidar com alguma perda. A diferença para com a melancolia pode ser vista neste ponto. A melancolia pode ser entendida, sim, como um processo mais patológico. Nela, processos e deslocamentos psíquicos mais complexos ocorrem. Em certo momento do texto Freud diz: “no luto o mundo torna-se pobre e vazio, na melancolia foi o próprio Eu que empobreceu”. 

Não posso recuar dessa ideia de que para vivermos com tudo isso é preciso assumir e lidar com o luto. Ainda que tenhamos ganhos em algum momento e/ou instância, ainda que tenhamos, de certa forma, conquistado e vivido em alguns momentos coisas boas. Há uma inegável e incalculável perda, ao mesmo tempo coletiva e extremamente singular.

Há um outro artigo de Freud, “Reflexões para o tempo de guerra e morte”, onde ele pensa sobre a então guerra corrente, a primeira guerra mundial. Dadas às devidas grandes diferenças entre as situações, há ali algo muito próximo do que hoje estamos vivendo, pois nesse texto Freud tenta localizar a modificação vivida pelos indivíduos diante do horror das escolhas e consequências daquela guerra. Chega a questionar a perda da imparcialidade da ciência. E discorre bastante sobre o lugar da morte no inconsciente. Mais precisamente sobre a falta de lugar, e nossa então atitude perante a isso. O que penso ser interessante para nós é a ideia de que no inconsciente não existe negação. Chega a dizer que ele “desconhece tudo o que é negativo e toda e qualquer negação; nele as contradições coincidem”. A respeito da morte, separa duas atitudes coexistindo no inconsciente: reconhecê-la como extensão da vida, e negá-la porque é irreal. 

Acredito que, diante da pandemia, estamos igualmente ambivalentes. A ideia de termos chegado ao fim de 2020 ainda tendo de lidar com essa forma tão catastrófica de seguir vivendo, parece nos colocar ora negando, ora reconhecendo o caos. Proponho, então, que por essas posições passemos, mas não fiquemos. Fiquemos no luto, cada um em seu tempo, mas percorrendo ele. “A revolta contra o luto estraga a fruição.” diz Freud, em seu belíssimo artigo “Sobre a transitoriedade”, que não à toa dá título a esse trabalho, e é um de meus preferidos. Nesse texto Freud chega a dizer que “o luto chega a um fim espontâneo”. Lembremos disso, lembrando junto que espontâneo não significa sem trabalho, não significa sem respeito, pelos processos científicos e psíquicos.

Freud escreve o artigo em questão após uma caminhada com seu amigo poeta, onde este alega não poder fruir de toda beleza do campo sabendo de sua transitoriedade. Freud alega o contrário, é apenas a partir da transitoriedade que podemos, então, fruir. Mas como posso eu, diante de tudo isso, em pleno dezembro de 2020, falar de fruição? É para que tomemos a fruição não como prazer desenfreado, mas como um prazer atento. A vida segue correndo, apesar da pandemia, mas isso não significa que dela temos que extrair todo e qualquer prazer possível, sabendo que o custo disso é a vida de outras pessoas, e até a nossa. Mas a vida segue, desse modo, e é preciso assumi-lo como tal, para podermos dele extrair a fruição cabível. Ainda que seja (diante da inacreditável, mas ainda assim inegável transitoriedade) apenas a esperança de uma futura fruição.

Poderia encerrar assim, mas prefiro, não inocentemente, encerrar com Freud: “Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes”.

 

Ingrid Valério

Psicanalista, psicóloga com especialização em Clínica Psicanalítica pelo IPUB/UFRJ, membro da rede Inconsciente Real e do grupo de estudos “Seminário 5”.

 

Referências bibliográficas

FREUD, S. – Luto e Melancolia (1919), in Edição Standard. Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, S. – Sobre a transitoriedade, in Edição Standard. Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 

FREUD, S. – Reflexões para os tempos de guerra e morte, in Edição Standard. Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

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