O Esquema Óptico e o Estádio do Espelho

No webinar “O Esquema Óptico e o Estádio do espelho’’, organizado pela rede Inconsciente Real, a psicanalista Michele Roman Faria compartilhou conosco sua leitura dessa teoria sobre a constituição do sujeito, proposta por Jacques Lacan, um psiquiatra e psicanalista francês que terminou sendo um dos maiores intérpretes de Freud.

A teoria do Estádio do espelho contribui para que entendamos como nossa organização da realidade e de nosso próprio Eu é uma espécie de efeito da capacidade que temos, enquanto humanos, de construir um sentido para o que vemos e ouvimos. Sem esse sentido, que é construído triangularmente entre Sujeito, Outro e Real (não dependendo apenas de um ou outro, mas numa relação dialética), não teríamos um ‘’Eu’’, um corpo, uma imagem, um nome para reconhecermos como nosso. As coisas passam a existir para nós a medida em que a realidade passa a ser lida com algum sentido, ou seja, não é tudo sem sentido. O não-sentido nos tornaria indiferentes a tudo e todos, inclusive aos objetos que nos cercam. 

Michele nos lembra que Lacan propõe que a realidade é feita de três registros: Real, Simbólico e Imaginário. Você já parou para pensar como e em que momento uma criança pequena se reconhece no espelho? Em como partimos da indiferenciação de tudo para a aquisição de uma noção de que existe um eu e algo diferente, um ‘’não-eu’’, tal como outras pessoas e objetos?

Por exemplo, como podemos reconhecer uma janela enquanto janela, e não como uma massa indiferente no meio de tudo que vemos, se não houver uma noção, em nós, de um ‘’eu’’ e de algo diferente do eu, um ‘’não eu’’? A realidade é sempre um recorte que fazemos dela, um recorte carregado de sentido, a tal ponto que, em sujeitos para quem os objetos e pessoas são tratados quase que com absoluta indiferença (como nos estados autistas) é como se a realidade fosse tratada como ‘’pura e simples’’, como um aglomerado de massas, vozes, imagens e estímulos indistintos que acabam por não ser sequer verbalizados. Colocar a realidade em linguagem possibilita organizá-la em nossa mente e também no laço com o outro. Essa é, inclusive, a direção do tratamento nos autismos…

Como elaborar algo a partir do nada? Dependemos da ação de fazer um recorte na realidade para então poder falar sobre ela, elaborá-la, pensá-la, queixá-la. Sempre precisamos de um apelo psíquico para apreender minimamente o que chega até nós e também para criarmos uma idéia de quem somos nós! O imaginário, que promove sentido, portanto, dá contorno ao Real, que por sua vez é aquilo que a princípio não sentido, é indiferenciado, imprevisível e apreensível e, por vezes, traumático e ameaçador. Esse contorno é uma tentativa de tratamento-elaboração do Real e possibilita parte do manejo que precisamos ter para lidar com o que chega até nós, nos-posicionar diante-de, fazer alguma-coisa-com.

Vimos que esse registro nos ajuda a construir, ainda que alienadamente, uma idéia de totalidade e de unidade em nosso corpo e em nosso narcisismo, a ponto de podermos reconhecer nossa imagem no espelho e poder dizer ‘’este sou eu’’, reconhecer nosso nome quando alguém o pronuncia e nos identificar com uma série de atributos que vão construir nossa subjetividade (o que faz de nós mesmos um eu diferente ao mesmo tempo igual aos outros). 

Tudo isso que chamamos de ‘’eu’’ é fruto de uma alienação nossa ao que as figuras importantes de nossas vidas (pai, mãe, avó, vô… no início da vida) vão mostrando, dizendo, falando para nós sobre como nós somos, desde esteticamente (que criança linda, que nariz bonitinho) até subjetivamente (que criança teimosa, que criança tímida). Mas não podemos esquecer, enfatiza nossa convidada, de que ao mesmo tempo em que nos alienamos aos significantes que vêm do outro, também nos separamos dessas definições, porque do contrário estaríamos reduzidos a ser inabalavelmente aquilo que ouvimos do outro, sem oscilações, transformações, contradições… E não existe alguém inabalável, que nunca se angustia, em nenhum tipo de estruturação psíquica (neurose, psicose ou perversão). Mas porquê todos nós somos seres abaláveis? 

Muito sinteticamente, podemos dizer que a angústia, o abalável em nós, existe porque o Eu não é absoluto e, por mais que aqueles que cumprem a função de nos criar, nos nomear e nos significar tenham um discurso seu sobre quem nós somos e como nós somos, o Real é sempre uma ameaça (Faria, 2010) que pode balançar nosso eu, sejamos neuróticos ou psicóticos.

A própria necessidade que temos de nos re-afirmar, de sermos validados pelo outro (mesmo que através de redes sociais) denuncia que aquilo que pensamos que somos é sempre frágil e por isso nos angustiamos quando algo ilusoriamente nosso está em jogo.

Por fim, essa teoria lacaniana é importante não apenas por buscar entender do que é feita a realidade, mas porque para além disso, e ao mesmo tempo a partir disso, auxilia o psicanalista a discriminar, em cada paciente, qual o estatuto dos registros da realidade e como eles operam, para assim, poder pensar o diagnóstico clínico e a partir disso o manejo do caso e sua angústia.

 

Patrícia Andrade

Psicóloga, psicanalista e membro da Rede Inconsciente Real

 

Referências bibliográficas

Faria, R. M. Imaginário, eu e psicose nos primeiros seminários de Lacan <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-71282011000100008>

Compartilhe:

Facebook
LinkedIn
Twitter
Telegram
WhatsApp