Mulheres na Psicanálise: Lélia Gonzalez

Lélia de Almeida Gonzalez (1935-1994) nasceu em Belo Horizonte. Seu pai era ferroviário, negro e sua mãe empregada doméstica, de origem indígena. Era a penúltima de 18 irmãos. Em 1942 mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, quando um de seus irmãos se tornou jogador de futebol no Flamengo. Lélia fez graduação em História e Filosofia, mestrado em Comunicação e doutorado em Antropologia Social. Trabalhou como professora na rede pública e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 

Como estudante e professora, Gonzalez entrou em contato com as barreiras impostas pelo racismo e, como dizia, “a questão do branqueamento bateu forte”, só sendo interrompida quando se casou, pois para lidar com a forte reação de discriminação da família branca de seu marido e mais tarde com o suicídio dele, aproximou-se da psicanálise e do candomblé, conseguindo se reconciliar com sua condição de mulher negra. Lélia afirmava “a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha … mas tornar-se negra é uma conquista”. Parafraseando Simone de Beauvoir, acentuava o desafio de tornar-se negro num país que apregoava a democracia racial, mito que insistia em desconstruir.

Gonzalez ajudou a fundar instituições como: Movimento Negro Unificado (MNU), Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), Coletivo de Mulheres Negras N’Zinga e Olodum. Sua militância pela mulher negra levou-a ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). Participou da formação do PT, posteriormente entrou no PDT, atuou nas discussões sobre a Constituição de 1988. Mesclava cultura ao fazer político: suas caminhadas de campanha eleitoral eram pontilhadas por flores amarelas em homenagem a Oxum; cantava sambas em comícios.

Representando o Brasil em diversos eventos nos EUA, na América Latina e na África sobre as condições de exploração e opressão dos negros e das mulheres, Lélia criou um marco conceitual para pensar a diáspora africana, sintetizada em sua proposta com a categoria da amefricanidade para definir a experiência comum dos negros nas Américas. Lembrava que o termo América Latina havia sido cunhado por Napoleão que, ressaltando origens latinas comuns à França, Portugal e Espanha, tentava justificar suas pretensões imperiais e o consequente direito da França sobre os territórios ocupados por Portugal e Espanha. Numa vertente oposta, Lélia enfatizava a preponderância dos elementos ameríndios e africanos no continente americano.

Atravessada pela Psicanálise, Gonzalez pensava que o racismo na América Ladina (como nomeava) denunciava uma neurose cultural que buscava por vários meios suprimir aqueles que do ponto de vista étnico eram testemunhas vivas da latinoamefricanidade denegada.  Em seu artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira” (1983), sua fala é contundente:

“Na medida em que nós negros estamos na lata do lixo da sociedade brasileira, pois assim determina a lógica da dominação, o risco que assumimos é o de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (…) que nesse trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa”.

Inspirada por conceitos de Jacques Lacan, Lélia questiona o fato de mulheres não brancas serem “faladas, definidas e classificadas por um sistema ideológico de dominação que nos infantiliza”. Considera que o negro, assim como o infans, são situados como se não tivessem fala própria, sendo-lhes atribuídos significantes pejorativos – irresponsável, incapaz, malandro – de modo a domesticar as marcas da amefricanidade. 

Nessa obra, a autora revela o lugar em que a mulher negra é situada no discurso hegemônico: no carnaval se encena o mito da democracia racial brasileira onde a mulata é a rainha, mas o outro lado deste endeusamento da mulher negra é sua transfiguração no cotidiano em empregada doméstica. Argumenta que por essa via se exerce a violência simbólica do mito da democracia racial, pois a empregada doméstica atualiza a figura da mucama, ou da escrava que carregava a família branca nas costas, cozinhando, limpando, amamentando as crianças e prestando serviços sexuais para seu senhor. 

No Brasil em 2019, Angela Davis pontuou que brasileiros precisavam reconhecer sua pensadora Lélia Gonzalez, uma das pioneiras nas discussões sobre relações entre gênero, classe e raça no mundo. Gonzalez antecipou uma abordagem que posteriormente foi denominada interseccional, que assinala a inter-relação entre “eixos de opressão”.

 

Lia Rudge

Psicanalista, psicóloga, membro do Departamento de Psicanálise com Crianças e do NAS (Núcleo de Assistência Social) do Instituto Sedes Sapientiae, membro da equipe do Trapézio-Grupo de Apoio à Escolarização. Membro da rede Inconsciente Real e integrante do grupo de estudos “O conceito de sonho em Freud e Lacan”

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