A pandemia, esse advento do real causado pelo novo coronavírus, exigiu a todos uma nova organização social. O Estado em seu papel de mediação e gestão criou medidas que alteraram o funcionamento de instituições tidas até então como essenciais – escolas, universidades, comércios, academias, bares, restaurantes e etc. – na tentativa de conciliar a oferta dos serviços e os efeitos nefastos do vírus, como forma de preservar a vida da população.
Para nós, psicanalistas, não foi diferente. Também estando submetidos aos efeitos do vírus e às medidas de prevenção do Estado através da quarentena, fomos convocados a repensar nosso setting para viabilizar nossa escuta. Muito rapidamente as diferentes ferramentas virtuais de videochamada, antes criticadas por muitos psicanalistas em seu uso maciço em nossa prática, foram popularizadas dentre nossos pares como forma de propiciar o trabalho da análise neste contexto. É certo que a princípio havia uma perspectiva mais curta de tempo quanto ao período da quarentena, mas houve que, com a extensão deste período, tais ferramentas virtuais foram sendo tomadas como meio oficial de trabalho. Sendo assim, tanto os analistas quanto os seus pacientes passaram a questionar: é possível fazer análise online?
Freud (1913) em seu texto “O início do tratamento” traz algumas recomendações àqueles que exercem a psicanálise. Logo no início do texto, ao considerar a diversidade da psique humana, e assim, a impossibilidade de mecanização da técnica psicanalítica, deixa claro que tais recomendações não são obrigatórias, mas diretrizes que podem orientar o trabalho analítico. Ainda mais à frente, Freud retoma que a única regra fundamental da técnica psicanalítica é a associação livre: “Portanto, diga tudo o que lhe vier à mente” (p. 181).
Assim, estando inseridos num momento social que clama pelo cuidado à própria saúde e à saúde do outro através do distanciamento social e tendo tais recomendações de Freud como diretrizes que balizam o trabalho do analista, fizemos uma breve reflexão em torno da nossa experiência neste período com os atendimentos online para pensar sua viabilidade e consequências.
Uma das recomendações é sobre o estabelecimento da transferência, ou seja, o endereçamento das questões do paciente à figura do analista. Para Freud o desejo de cura do paciente funciona como a força motriz do trabalho da análise, pois é somente ao passo que o paciente supõe ser o analista aquele que pode lhe ajudar a resolver suas angústias que este as remete, transfere, ao profissional, possibilitando a formação de um vínculo e o início do trabalho da análise. Neste sentido, podemos dizer que muitos dos pacientes que já estavam sendo acompanhados sustentaram a transferência com seu analista mesmo após a mudança para o setting online, preservando a aposta de mitigar seu sofrimento psíquico no espaço construído pela relação analítica. Além destes, novos pacientes buscaram a análise nos moldes online, apontando para a possibilidade de se estabelecer tal endereçamento das questões e, portanto, da transferência, mesmo sem os corpos fisicamente presentes.
Outra recomendação é sobre o tempo. Freud (1913) antecipa a importância da determinação do horário e da responsabilidade do paciente para com este. Além disso, o autor atesta sobre a importância da frequência para que não se perca, em meio a desmarcações ou sessões com grandes intervalos, os efeitos do tratamento sob o paciente. Nesta perspectiva, podemos afirmar que o setting online não prejudicou a contratação do tempo, pois os combinados estabelecidos puderam se sustentar na virtualidade e, para alguns, foram até facilitados por não haver a necessidade de se locomover para ir à análise.
Da mesma forma, a questão do dinheiro, uma das recomendações levantadas por Freud, também não apresentou grandes perturbações. Havendo a possibilidade de transferências e depósitos bancários, os pacientes passaram a efetuar seus pagamentos desta maneira e enviar seus comprovantes como testemunho de seu ato, fazendo cumprir a função reguladora do pagamento na relação profissional entre analista e paciente, estabelecendo os limites desta para que não se confunda com coleguismo ou caridade, além de cumprir sua função de implicar o paciente no tratamento pela via de seu custo.
Por fim, Freud aponta o divã como mais uma recomendação, descrevendo seu uso como uma forma de preservar o próprio analista de ser observado por tantas horas durante o dia, mas também para livrar o paciente de qualquer expressão que escape do rosto de seu analista que possa desviá-lo do que mais interessa ao processo de análise, a associação livre. Neste caso, as câmeras desligadas ou a saída do rosto do analista do enquadre da câmera tem desempenhado tal finalidade.
Com tal recorte de nossa experiência articulada às recomendações de Freud, é possível dizer que a análise online tem sido viável e tem operado seu papel dentro do contexto e limitações que estamos vivendo no momento atual. Jacques Lacan, psicanalista pós-freudiano, fez um esforço brutal para a desburocratização da psicanálise, defendendo não haver garantias para a formação ou atuação dos analistas através de ortodoxias, entendendo as formações em escolas, o tempo, o divã ou o dinheiro insígnias imaginárias que não garantiriam por si só uma análise. Lacan rompe com a Sociedade Internacional de Psicanálise e funda sua própria escola, a Escola Freudiana de Paris, como forma de instaurar outro modo de fazer psicanálise – um modo pela ética e não pela regra (Quinet, 2009), o que diz sobre o desejo do analista em escutar e considerar o inconsciente de seu paciente na construção da análise como algo particular, único, e não universal. Neste sentido, a queda das garantias imaginárias da formação e atuação psicanalítica e a formulação da psicanálise em moldes éticos endossa nossa construção até aqui de que é possível sim fazer análise online, porém sem deixar de se atravessar pelos questionamentos e efeitos clínicos que este novo enquadre pode nos trazer.
O que colheremos sobre a análise sem o corpo físico presente? Quais os efeitos do paciente não precisar se organizar para pegar o transporte público ou mesmo o trânsito em seu próprio carro para ir até à análise? O que aparecerá a partir dos pagamentos facilitados por aplicativos?
Gabriela Pizzimenti
Psicóloga, Psicanalista e Acompanhante Terapêutica, membro da Rede Inconsciente Real e participante do Grupo de Estudos Feminismo e Psicanálise
Referências bibliográficas
Sigmund, Freud. O início do tratamento (1913).
Quinet, Antonio. As 4 + 1 condições da análise (2009)