“A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”
(Machado de Assis – O Alienista, p. 16)
Chamo o conto de Machado de Assis aqui em sua provocação aos limites da ciência quanto à definição do que seria a sanidade. É extraordinária a maneira como o autor expõe o ridículo das certezas médicas e da ciência acerca da saúde mental, do sofrimento psíquico e dos limites entre normal e patológico. Apesar de ter sido escrito no ano de 1896, o conto se mantém atual, pois ilustra a forma como o diagnóstico médico tenta forjar uma unidade tratando o sujeito como um corpo orgânico que segue a ordem fisiológica, sem levar em conta suas particularidades. Em O Alienista[1], o protagonista Simão Bacamarte é um médico que busca estudar a alma humana e encontrar um remédio universal. Com um critério bem rigoroso, porém, racional para separar a razão da loucura, promove a internação de quatro quintos da população da cidade, causando o espanto das pessoas ao encontrar patologia nos sujeitos considerados mais sãos. “Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural, e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental.” [1 p. 48]
Simão, buscando separar o normal e o patológico, ora vê toda a cidade como louca, ora entende que o desequilíbrio, esse sim, é o índice de normalidade, devendo então intervir nos equilibrados, naqueles que “padeciam do perfeito equilíbrio das faculdades mentais” [1]. Até que sem restar uma só pessoa equilibrada além de si mesmo, decide se tornar objeto de seu estudo: “A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática. (…) Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e a cura de si mesmo.” [1, p. 61]. O protagonista se depara com aquilo que é impossível de mensurar na existência humana, o particular de cada um. Procurando classificar, diagnosticar e encontrar um tratamento universal, o alienista não consegue, nem parcialmente, dar conta da imensidão da existência humana e seu sofrimento.
Como acontece ainda nos dias atuais, a crônica mostra a busca pela classificação da existência humana. Na ciência psiquiátrica, isso é vivido através das formulações de manuais ou compêndios que categorizam e esquematizam em sinais e sintomas o sofrimento psíquico. Como nos ensina Simão Bacamarte, essa transformação do sofrimento em números não deixa espaço para a particularidade do doente, restando apenas padrões de normalidade e anormalidade, sem incluir aquele que sofre. Para um médico o sintoma é um signo, ou seja, representa a doença. Diferentemente, para a psicanálise, a desordem da qual o paciente se queixa não revela a verdade de uma doença orgânica, mas a verdade do sujeito do inconsciente.
A grande mudança freudiana de paradigma foi justamente a demonstração, através da existência do inconsciente de que o sujeito não é inteiro, está sempre dividido, algo sempre foge à consciência. Em O Mal-Estar na Civilização (1930), Freud afirma que para a humanidade alcançar a vida em comunidade foi necessário abrir mão de fontes instintuais de satisfação. “O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança”[2]. A própria cultura seria por si só uma fonte de mal-estar, não deixando nenhum sujeito fora desse conflito. O compartilhamento pela humanidade de um desarranjo no nível da razão pode ser compreendido pelos os atos falhos, chistes e esquecimentos, o que Freud nos apresenta como a psicopatologia da vida do cotidiano. É, justamente, a partir das limitações impostas pela cultura que as neuroses se constituem, algumas se adaptando melhor, outras com algumas exacerbações que causam mal-estar ao sujeito. Portanto, mesmo que haja na psicanálise uma psicopatologia, ela não é segregativa e não toma a loucura, o desarranjo, como uma doença, mas como um enigma [3].
Como resultado disto, a queixa do sujeito que procura a análise é compreendida como radicalmente pessoal e impossível de ser generalizada, diferentemente do que tenta a prática da medicalização, da psiquiatria e dos compêndios diagnósticos. Oferecer disponibilidade para que o sujeito fale sobre seu sofrimento e encontre recursos autorais para lidar com seu próprio mal-estar produz não só o alívio do conflito, como também a construção de no novos arranjos para o enfrentamento da vida. Sem reproduzir práticas que buscam eliminar o sintoma através da retificação do comportamento, a partir da ótica psicanalítica é possível entender o sujeito em sua integralidade e singularidade, avisado da relação intrínseca entre sujeito e sintoma, já que um não existe sem o outro. Afinal, o sintoma do qual o sujeito se queixa tem também uma função em sua vida. Se foi desenvolvido pelo sujeito é porque, em algum momento, foi a solução encontrada para dar conta de seu lugar no mundo dos falantes.
É evidente que o saber psiquiátrico, as classificações e os compêndios, têm o seu lugar. Estes permitem maior entendimento entre profissionais, orienta as políticas de saúde e os estudos farmacológicos e epidemiológicos, por exemplo. Mas, na prática clínica, há que se ter cuidado com a generalização e a algoritmização dos sujeitos. Cada sujeito tem em si sua loucura normal, seu desalinho na existência, uns pelo desequilíbrio, como nomeou Machado de Assis, outros pelo excessivo equilíbrio e moralidade, por exemplo, mas cada qual com sua marca singular e modo próprio de estar no mundo.
Luanda Chamarelli
Psicanalista, psicóloga e mestre em psicologia pela UFF, membro da rede Inconsciente Real e do grupo de estudos “Sonhos”.
Referências bibliográficas
AMARANTE, P., FREITAS, F. Medicalização em Psiquiatria. (Coleção Temas em Saúde), 22. ed. – Rio de Janeiro: Editora FioCruz, 2015.
[1] ASSIS, Machado de. Obra Completa v. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
[2] FREUD, Sigmund. (1930 [1929]) O mal-estar na civilização. Edição Standard. Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
MAIA, A. B., MEDEIROS, C. P. de, FONTES, F. O conceito de sintoma na psicanálise: uma introdução. Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 1, p. 44-61, jun. 2012. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-71282012000100004&lng=pt&nrm=iso | Acesso em: 29 de julho de 2019.
MOREIRA, Maíra Marcondes; OLIVEIRA, Álvaro. O inerente mal-estar na psicopatologia freudiana. Reverso, Belo Horizonte , v. 39, n. 74, p. 55-60, dez. 2017 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952017000200007&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 06 set. 2020.
[3] TEIXEIRA, A; CALDAS, H. (org). Psicopatologia lacaniana I: semiologia, 1 ed. – Belo Horizonte: Autentica, 2017.
Ilustração
Da capa da edição Antofágica com ilustração de Cândido Portinari