ABC do inconsciente – Pode haver vantagem em estar doente?

ABC do Inconsciente – Pode haver vantagem em estar doente?

Nesta quinta parte do texto “A questão da análise leiga”, Freud aborda com seu interlocutor as dificuldades que um psicanalista terá de lidar durante o tratamento de um neurótico e quais seriam as obrigações que um aspirante a psicanalista deveria cumprir para exercer essa profissão. 

O autor começa dizendo que no começo do tratamento poucas coisas que o paciente disser farão algum sentido. Eu diria que primeiro é preciso colher informações soltas e ficar com elas registradas.

Para que o analista possa chegar a conclusões (ou melhor, hipóteses) e possíveis interpretações sobre seu paciente, seria necessário não apenas tempo mas também seguir regras fundamentais, aprendidas durante a formação teórica (estudos) e supervisão, na qual o psicanalista conta sobre seus casos para um outro analista supervisor, mais experiente na clínica, que o ajudará a pensar o caso em questão.

Durante a formação teórica, o estudante de psicanálise aprende que os conteúdos trazidos pelo paciente são como que deformados, indiretos, e segundo Freud lhe caberia a tarefa de “adivinhar” o que se esconde por trás do que é dito: o que teria sido recalcado pelo aparelho psíquico, ou seja, que verdade sobre a própria vida o sujeito está tentando evitar? Em todo sintoma teríamos um conflito, que expresso dessa forma sintomática traria algum tipo de ganho ou vantagem inconsciente, apesar do sofrimento do Eu e da consciência. Vocês lembram que nos textos anteriores falamos sobre as pulsões e os conflitos Eu-Isso-Superego?  Ao mesmo tempo em que algo está reprimido pelo Eu, algo está sendo satisfeito em outra instância (Isso ou Superego). Não podemos fugir de nós mesmos; vimos no texto anterior que a pulsão sempre encontra novos caminhos para seguir…

Freud segue falando sobre a necessidade de interpretar o analisando (paciente) a partir de suas recordações, ocorrências e sonhos trazidos. Além de formular hipóteses e interpretações, seria preciso aguardar o ”momento certo” para aproximá-las do paciente, e isso seria uma questão de tato, a ser refinado através da experiência, da prática clínica. O autor alerta que despejar uma interpretação no paciente em um momento inadequado, com o objetivo de encurtar ou acelerar o tratamento, só geraria resistência, rejeição e indignação do paciente.  Freud aprendeu isso em sua prática com seus próprios pacientes… 

O recomendado é sempre esperar até que o paciente esteja a apenas alguns passos de certa ideia, bem próximo de determinada associação, mais preparado e com menos defesas para lidar com o conteúdo recalcado. Para Freud, o tratamento visava fortalecer o Eu enfraquecendo ideias e conteúdos prejudiciais, geradores de recalque e resistência.

Mas como evitar que aspectos inconscientes do analista interfiram no tratamento que este oferece a seu analisando? Para Freud, a análise pessoal do analista daria condições para que a escuta do inconsciente do analisando possa fluir pela mente do psicanalista sem confundir-se com questões pessoais dele mesmo. Assim, ele poderá interpretar com certa imunidade, sem arbitrariedades, apenas com base no que se formou em sua “mente de analista” enquanto ouvia o paciente. Resumindo: para escutar seus analisandos, o psicanalista precisará estar em tratamento e ser escutado por um par, um outro psicanalista. Essa seria mais uma regra a ser seguida por todos aqueles que aspiram a profissão de psicanalista – ao menos para Freud.

O texto também aborda um fato tão assustador quanto curioso a respeito do sintoma neurótico. Freud explica: ora, se o sujeito neurótico é, por definição, um sujeito dividido, suas vontades não são unificadas, portanto, o neurótico tem vontades conflituosas. Uma parte dele quer se curar enquanto a outra, não. Ele quer se curar e ao mesmo tempo não quer. Ele afirma:

“Eles reclamam da doença, mas a aproveitam ao máximo, e quando queremos tirar deles, eles a defendem como a leoa defende os filhos” (p. 253)

Por exemplo, um homem do exército que adoece e assim não precisa ir para a guerra, ou a pessoa que se sente incapaz ou amedrontada na profissão, mas não quer admitir isso aos outros obtém uma desculpa para si e para os outros ao ficar doente. ou aquele que adoece e assim obriga outros familiares a sacrifícios e provas de amor, ou apenas para para impor sua vontade. As forças  do superego também seriam capazes de adoecer o neurótico, punindo-o como o Outro puniria, seja pela culpa, pelo julgamento ou pela punição dura. Uma parte de nós pode, sim, nos auto castigar, porque não somos sozinhos, mas a partir do Outro, que nos habita diversamente.

Uma das dificuldades do tratamento das neuroses teria relação com a famosa “transferência”, uma espécie de vínculo do paciente para com seu psicanalista, que tanto pode ajudar quanto atrapalhar o tratamento, a depender de sua intensidade e seus modos. A transferência está presente em todas as nossas relações e não acontece apenas no consultório. Ela tece nossas relações pessoais, mas apenas o psicanalista faria uso dela como uma ferramenta de trabalho, pois sabendo e “sacando” as relações de seu paciente com os outros, o analista obtém consciência das diversas figuras que pode encarnar para o paciente, e isso ajuda o analista a manejar a transferência e fazer uso dela.

É por causa da transferência, também, que o analista deve manter-se afastado do paciente no âmbito pessoal, cercando sua própria pessoa de uma certa reserva.

Vimos, então, como o psicanalista se prepara para não estar à mercê de suas próprias arbitrariedades, tendo que estudar, se analisar, fazer supervisão e praticar muito. Segundo Freud, dois anos seriam necessários em média para a formação do leigo, então iniciante e posteriormente mestre. A prática e a troca de ideias entre associações psicanalíticas seriam permanentes na vida social do analista, agora apta a tratar de distúrbios neuróticos, não necessitando de formação médica.

 

Patrícia Andrade
Psicanalista e psicóloga, aprimorada em Saúde Mental pelo Instituto A Casa e membro da rede Inconsciente Real

 

Bibliografia:

Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Obras Incompletas de Sigmund Freud;  Editora Autêntica. A questão da análise leiga, parte V

Dicionario del psicoanalisis. Roland Chemama y Bernard Vandermersch. Editora: Amorrortu, Buenos Aires, 2010.

Compartilhe:

Facebook
LinkedIn
Twitter
Telegram
WhatsApp