ABC do Inconsciente – Freud e o Inconsciente no século XIX
“O conceito de inconsciente está agora tão firmemente associado a Sigmund Freud que é difícil imaginar uma concepção alternativa do inconsciente, que de alguma forma não dependa ou derive da psicanálise. No entanto, como os estudos da pré-história da psicanálise enfatizam, Freud não introduziu o conceito do zero: já em 1900, quando A Interpretação dos Sonhos é publicada, o inconsciente era uma temática intelectual bem estabelecida”
GARDNER, 2010, p. 107
O inconsciente é um conceito estranho como constructo teórico: por definição, aquilo a que não temos acesso, que não sabemos nada sobre (o não-sabido, em alemão, unbewusste). Como usar algo assim como fundamento de uma disciplina, no caso, a psicanálise?
A noção que entra aqui é que nem tudo que nos diz respeito, a nossa subjetividade, nos é cristalino…
Freud foi um dos grandes responsáveis por inserir o “inconsciente”, enquanto termo, enquanto conceito, nas discussões contemporâneas. Grande parte das discussões sobre o tema são realizadas dentro do paradigma da psicanálise, ou dizendo respeito a obra de Freud e seus inúmeros desdobramentos posteriores, inclusive nas Ciências Sociais. O nome do psicanalista é indissociável do conceito: o termo remete a sua figura de maneira quase que automática.
Mas não se pode dizer que Freud foi o descobridor do inconsciente. Durante o século XIX, diversos autores e tradições da psicologia e da filosofia já debatiam esse conceito*, buscando entender o funcionamento da mente, da consciência e se havia algo além dela. Freud era um homem erudito, versado em muitas áreas do conhecimento, como a medicina, a psicologia e a filosofia, o que possibilitou que ele se inserisse no debate acerca da discussão: existe o inconsciente? O que ele seria? Como ele funciona?
As ideias de Freud contribuíram para inserir o inconsciente como objeto de estudo na psicologia, e não mais apenas a consciência. Embora não tenha sido exatamente o primeiro a fazer esse movimento, Freud foi de importância instrumental para todos os futuros desenvolvimentos nesta direção.
Os estudos sobre o inconsciente o levaram a elaborar e inaugurar uma forma de tratamento terapêutico que se afastava do contexto médico estabelecido e uma metodologia investigativa das psicopatologias que partia da escuta e da prática clínica: a psicanálise – conhecida também como um tratamento de “cura pela fala”.
Uma das influências centrais para o desenvolvimento da noção freudiana de inconsciente, bem como para todo o desenvolvimento de sua clínica foi a influência do médico Charcot e do restante dos hipnotizadores franceses.
Freud começa suas investigações no século 19, observando pacientes histéricos (pessoas com sintomas físicos inexplicáveis anatomicamente, desafiando o saber médico) utilizando a hipnose como técnica de tratamento. A partir de suas observações empíricas (na prática), Freud partia do ponto de que havia alguma coisa que afetava o psiquismo que produzia efeitos sem estar presente na consciência do sujeito. Ele pesquisava a formação dos sintomas histéricos, dos chistes e atos falhos, que seriam denominados como manifestações do inconsciente, que não seriam arbitrários tampouco puramente fisiológicos.
Foi a partir daí que ele começou a produzir sua própria teoria acerca do inconsciente, dando origem à criação que o eternizou na História: a psicanálise. Vale destacar que a hipnose foi abandonada por Freud e substituída pelo método da associação livre, que permanece até os dias de hoje como a via de acesso ao inconsciente dentro do método psicanalítico.
“Podemos dizer que Freud buscou racionalizar a histeria enquanto psicopatologia de sua época, que era muito mal vista pelos médicos (muitos acreditavam que a histeria era um fingimento) pois não conseguiam encontrar nenhuma explicação para os fenômenos da doença. A Igreja e a sociedade consideravam que poderia ser algo demoníaco, oculto, maligno. Mas Freud não era um homem de crenças e sua insatisfação se transformou em vontade de saber, em vontade de entender o inconsciente.
É verdade que anteriormente já se tinha a clareza do homem enquanto ser não plenamente racional, movido por forças internas as quais não tem controle. O que Freud executa de diferente é enquadrar a irracionalidade do sujeito sob a ótica da racionalidade científica e estudar empiricamente o irracional, valorizando os fenômenos da ordem do oculto ou do bizarro (sonhos, chistes, atos falhos) como manifestações do inconsciente. Assim, ele estabeleceu de modo contundente a necessidade de se debruçar sobre fatos inconscientes, para compreender o funcionamento dos fenômenos psíquicos.
Diferente da medicina, na psicologia não é possível estudar estruturas orgânicas post mortem. Por isso a necessidade de uma estrutura teórica especulativa, baseada em observações clínicas, para explicar o que ocorre na prática. Ao desenvolver uma ficção teórica para caracterizar o funcionamento do aparelho psíquico, Freud se baseou também em observações empíricas, passíveis de serem observadas clinicamente, como a transferência e o complexo de édipo, manifestações do inconsciente que são verificáveis na prática clínica. Mas conceitos da metapsicologia como pulsão e libido, por exemplo, embora sejam inferidos a partir de observações clínicas, não são observáveis. Todas essas questões são a base dos estudos sobre o inconsciente para Freud.
O conceito de inconsciente certamente figura entre os mais controversos da história do conhecimento. Sua simples menção já suscita certo incômodo, contrariando uma ciência que se respalda em princípios como os de “razão”, “controle” e “materialidade”.
Freud é amplamente creditado por popularizar e tornar o conceito de inconsciente muito conhecido e estudado dentro do campo da psicologia e psicanálise. Suas teorias e trabalhos foram fundamentais para a compreensão moderna do inconsciente como uma parte importante da mente humana.
Ele contribuiu de forma significativa para a compreensão moderna do inconsciente e suas teorias tiveram um impacto profundo na Psicologia e nas Ciências Sociais.
Uma vez que este não é totalmente governado pela razão e pela consciência, o Eu não é senhor de sua própria casa, como dizia Freud, então qual seria o grau de liberdade do sujeito? Tudo o que sabemos até hoje é: mesmo com tantas teorias, ainda há algo de inefável sobre quem somos nós.
*Como Friedrich Schelling, Eduard von Hartmann e Pierre Janet, entre outros. Antes de Freud, o grande autor de referência era Edward Von Hartmann e sua “Filosofia do Inconsciente”, livro publicado em 1868 e que se tornara um best seller na alemanha, com o livro tendo sucessivas reedições ainda durante a vida do autor.
Referências:
Braga, E. T. Noções de Inconsciente no Século XIX:
Tradições Pré-Psicanalíticas e sua Relação com a Obra Freudiana. Dissertação de Mestrado em Filosofia. PUC-SP (2022)
GARDNER, S. Eduard von Hartmann’s Philosophy of the Unconscious. In Nicholls, A. e Liebscher, M. Thinking the Unconscious: Nineteenth-Century German Thought. Cambridge University Press 2010.
Xavier, R. C. A História do inconsciente ou a inconsciência de uma História? <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rag/v16n1/v16n1a07.pdf>
Froes, H; Viana, C. T. A noção de inconsciente nos primeiros textos de Freud: do cognitivo ao reino das sombras <pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812016000400016>
Patrícia Andrade
Psicanalista e psicóloga, aprimorada em Saúde Mental pelo Instituto A Casa e membro da rede Inconsciente Real