ABC do Inconsciente – Além do Princípio do Prazer
No texto “Além do princípio do prazer”, de 1920, se baseando em suas observações das neuroses traumáticas e das brincadeiras infantis, Freud começa a renovar sua teoria de que o aparelho psíquico seria regido pelo princípio do prazer. O princípio do prazer é bastante complexo, mas podemos narrá-lo resumidamente assim:
O aparelho psíquico é afetado o tempo todo por estímulos internos (como a fome) ou externos (como o frio) que produzem nele uma tensão gradual. É preciso que haja algum acúmulo de tensão para que sejamos mobilizados a agir; mas é preciso que nos orientemos não somente pela satisfação mais imediata, pois há momentos em que essa não é a estratégia mais benéfica para o que desejamos alcançar, ou seja, é importante que também sejamos capazes de adiar a saciação de vontades e o descarregar das tensões. A esses dois pontos Freud nomeia de princípio de constância e princípio de realidade. O princípio do prazer seria a busca do aparelho psíquico pela eliminação dessas tensões, pois isso levaria a eliminação do desprazer, tendo como efeito a sensação de prazer. Mas essa busca não pode se dar sem freios e filtros, pois isso seria, no limite, mortal. Pense só: seria incompatível com nossa própria sobrevivência se o aparelho psíquico trabalhasse apenas para eliminar todo e qualquer acúmulo de tensão. Isso nos conduziria a um imediatismo tão intenso que nos conduziria apenas à morte*. Mas princípio do prazer e princípio da realidade operam mutuamente, sustentando assim nossa própria sobrevivência na medida em que regulam nossas ações.
Nesse mesmo texto outras camadas do aparelho psíquico começam a ganhar forma para o psicanalista: é aí que ele introduz o conceito de pulsão de morte e compulsão à repetição. Ele parte da seguinte questão: por quê o aparelho psíquico repete experiências desprazerosas que nunca estiveram ligadas a prazer algum? Ele chamou esse fenômeno de compulsão à repetição. Se algumas repetições tinham tendências restitutivas, ou seja, devolviam simbolicamente algum prazer ou benefício secundário para o sujeito (como no teatro e nas brincadeiras infantis, por exemplo), outras se apresentavam vazias, como uma pura tendência a repetição, puro desprazer, sem nenhum ganho prazeroso. Esse tipo de compulsão tinha um caráter que Freud chamou de “demoníaco”, porque sua tendência repetitiva se impunha de forma enigmática e paradoxal, arrastando o sujeito contra sua vontade consciente para os lugares mais obscuros e desprazerosos de sua existência.
Ora, em suas brincadeiras infantis as crianças também produzem repetições de situações que foram traumáticas e difíceis – mas muitas vezes essa repetição é restitutiva, no sentido de que a criança muda da posição passiva para a ativa (ela se sente controlando a cena, se vingando de algo/alguém, experienciando uma cena traumática não mais de maneira passiva), o que gera, no fim das contas, satisfação e prazer. Até mesmo os filmes e peças de teatro mais tristes e trágicos são capazes de gerar um sofrimento com prazer, ou melhor, uma identificação e uma satisfação no espectador, inserindo-o numa espécie de “faz de conta” que muitas vezes é uma repetição de algo que realmente ocorreu em sua vida, mas que agora é experienciado de maneira passiva e sublimada, atravessada pela beleza e elaboração artística. Nem toda cena traumática repetida gera o que hoje chamamos de “gatilho”. Esse efeito de gatilho negativo vai depender de cada sujeito e sua história pessoal…
A grande novidade do texto em questão, ou pelo menos uma das mais importantes, é o conceito de pulsão de morte. Apesar do nome, ela é tão importante e fundamental para o aparelho psíquico quanto as pulsões de vida. Isso porque elas são complementares: enquanto as pulsões de vida têm a capacidade de habilitar nossas funções para ligar, vincular, unir, aproximar, juntar, investir (em tudo e qualquer coisa), as pulsões de morte são responsáveis pelas nossas capacidades de desligamentos, separações, regressões… Todos esses movimentos psíquicos são necessários para todo e qualquer ser humano. Então podemos dizer que, sim, tanto a pulsão de vida quanto a pulsão de morte podem trabalhar a favor da vida, pois em muitos momentos nós precisamos ser capazes de nos desligar (de algo ou alguém, e até mesmo no sono, pois para dormir é precisa se desligar!), de separar, de desinvestir em objetos, ideias, pessoas e coisas para seguir em frente. Toda criação, processo ou reinvenção pressupõe ligações e rupturas, investimentos e desinvestimentos…
Uma das coisas que mais intrigava Freud a respeito da pulsão de morte eram suas manifestações demoníacas, essas que perturbavam de maneira disfuncional a vida psíquica de um sujeito, asfixiando-o em angústias e sofrimentos paralisantes (o que posteriormente Lacan interpretará como gozo!).
O ser humano é capaz de elaborar uma experiência traumática e desagradável a ponto de conseguir extrair dela alguma satisfação. O humor, a arte, a terapia e toda forma de laço social são caminhos para nos curar de nossos traumas. Não é justo culpar a si mesmo ou a outrem quando não está sendo possível, ainda, encontrar um caminho “de vida” para uma dor que insiste em nos perturbar. O aparelho psíquico é algo muito complexo e para dar conta do que há de “sombrio” e “demoníaco” na natureza do psiquismo humano é necessário muitas tentativas, muitas formas de tratamento, muita palavra e muito cuidado (no sentido do ato de cuidar de si e do outro).
*Não é por acaso que muitas pessoas chamam o orgasmo sexual de pequena morte (petit mort). Após grande excitação e tensão do órgão sexual vêm o orgasmo, que elimina por completo as tensões e gera uma sensação avassaladora de prazer, tão intensa e absoluta que acabou associada com a morte. Ainda bem que ao menos no sexo podemos ter uma experiência dessas sem morrer, não é?
Patrícia Andrade
Psicanalista e psicóloga, aprimorada em Saúde Mental pelo Instituto A Casa e membro da rede Inconsciente Real