“Um dia
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter”
Gilberto Gil, Super-homem
Ao longo da história da humanidade a referência masculina de mundo se prevaleceu como o normativo, o hegemônico: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”, disse o Deus ocidental, judaico cristão, pouco antes de conceber Adão do barro.
Thomas Laqueur (2001) remonta de maneira magistral as concepções ocidentais de sexo e gênero em seu livro “Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud”. Durante milhares de anos acreditou-se que as mulheres tinham a mesma genitália do que os homens, porém interna. Galeno, no século II d.C., desenvolveu o mais poderoso modelo da identidade estrutural dos órgãos reprodutivos. Ele demonstrava detalhadamente que as mulheres eram essencialmente homens, nos quais uma falta de calor vital – de perfeição – resultara na retenção interna da genitália. Assim, a vagina era vista como um pênis interno, lábios como prepúcio, útero como escroto e ovários como testículos.
Na obra “O banquete” de Platão, essa lógica é bem exemplificada. Durante o banquete realizado, discute-se sobre Eros (amor) e muito é dito acerca da relação entre os erastas e os erômenos. Erômenos eram adolescentes do sexo masculino envolvidos em uma relação amorosa com os erastas, homens mais velhos geralmente aristocratas. Essa era considerada a relação de amor mais digna e sublime possível, pois a mulher era considerada um ser inferior, tais como os escravos e estrangeiros.
Essa visão de “sexo único” perdurou até o século XVIII. A linguagem marca essa visão da diferença sexual. Por dois milênios o ovário não tinha nome específico, ele passou a ser considerado essencialmente feminino somente no século XIX. Antes usava-se a mesma palavra que se referia aos testículos.
A partir do final do século XVIII, um novo modelo de dimorfismo sexual, de divergência biológica deu lugar a uma metafísica de hierarquia, na representação da mulher com relação ao homem, isto tendo em vista que antes o objetivo e a causa final era o homem. Assim, o eixo estabelecido entre homens e mulheres, até então verticalizado e hierárquico, torna-se como polos opostos, incomensuráveis. A visão dominante do século XVIII era que há dois sexos estáveis, incomensuráveis e opostos, e que a vida social, política, econômica e cultural eram, de certa forma, baseados nesses “fatos”.
A psicanálise, assim como outras expressões e produções culturais do ocidente, foi criada nesse contexto autoral dos homens. Freud, em 1912 publica “Totem e Tabu”, uma tentativa de estruturar e descrever como se deu a organização da sociedade. Ele concebeu uma fantasia mitológica para as origens da humanidade com uma grande influência de Darwin: o mito do assassinato do pai da horda primitiva. Um macho poderoso detém todas as fêmeas e seus filhotes para si. Pai tirânico e violento monopoliza as mulheres e condena seus filhos à abstinência, à submissão e acaba por expulsá-los conforme eles crescem. Certo dia, os filhos que haviam sido expulsos retornam juntos, matam e devoram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal.
Sobre esse parricídio fundante, Freud diz “O pai morto tornou-se mais forte do que fora vivo”, pois o que até então fora interdito devido a real presença do pai, os filhos passaram a proibir. O pai enquanto vivo era a lei, e o pai depois de morto passou a ser o representante da lei. Nas palavras de Lacan (Seminário 18), o mito Totem e Tabu funda o “estatuto do homem”, finca-se na égide do simbólico. O pai primevo seria a exceção, o único homem que gozava do privilégio dos não limites estruturantes que, ironicamente, é a referência magna de masculinidade, como coloca Lacan, posteriormente, nas fórmulas de sexuação. É o gozo desse pai que fundará a contradição necessária para uma crítica da razão aristotélica, fundamental na defesa da existência de uma lógica não toda.
Pedro Ambra, em seu livro “O que é um homem? Psicanálise e história da masculinidade no Ocidente”, faz definições interessantes sobre masculinidade e virilidade. Para ele, a virilidade seria entendida como sinônimo das representações que circundam o pretenso passado sem leis em que um homem todo poderoso teria possibilidade de existência. Já a masculinidade se refere ao conjunto de representações, vivências e discursos que o homem ocidental teria no que diz respeito ao seu sexo, o que é indissociável do ideal de civilização no qual ele se encontra. Ou seja, a masculinidade será tanto baseada quanto assombrada pela virilidade, a tese que a virilidade perdida ocupa todo homem se faz possível e é presente no recorrente discurso nostálgico que habita a socialização masculina.
O discurso do homem, o discurso masculino (talvez fálico) é nostálgico, contém marcas imaginárias de um momento do livre gozar que o aproxima a uma posição do pai primevo, a um momento pleno que foi perdido, assim como era a existência antes de Eva morder o fruto proibido, ou antes de Pandora abrir a caixa e infestar o mundo com os males que ali foram guardados.
O discurso repetitivo e nostálgico do homem na realidade não somente exprime o medo de que ele não faça mais parte à malta de irmãos parricidas, que carregam alguns privilégios do assassinato do pai, ele teme que o pai privemo seja um parente distante, sem familiaridade alguma, e, que a plenitude de seu gozo (que imaginariamente ele já teve) seja algo que não se permaneça em sua mítica individual, que não caiba mais como a exceção fundante, ou seja: qual meu lugar de homem se não gozo?
Tales Furtado Mistura
Psicólogo, psicanalista, mestre pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Membro da rede Inconsciente Real e integrante dos grupos de estudos “Seminário 5” e “O conceito de sonho em Freud e Lacan”
Referências bibliográficas
AMBRA, P. O que é um homem? Psicanálise e história da masculinidade no Ocidente. São Paulo. Annablume, 2015.
FREUD, S. Totem e Tabu. SE, v. XIII, 1913, ed. Imago, 1999
LACAN, J. (1971-71) o seminário livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2007
LAQUEUR, T. W. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.
PLATÃO. O Banquete: ou do amor. Difel. 4ª ed. São Paulo, 1989