ABC do Inconsciente – Humor para a Psicanálise

ABC do Inconsciente – Humor para a Psicanálise

A característica mais própria do humorista é a capacidade de rir de si mesmo, bem distante do “nada me pode acontecer” (Kupermann, 2003 p.123)

“Não é, assim, a onipotência narcísica que predomina na experiência humorística. O humor, bem como a criação sublimatória, caracterizam efetivamente triunfos nos quais, porém, é reafirmada incessantemente a onipotência erótica infantil como a força motriz que move o aparelho psíquico na direção da satisfação pulsional e da realização do desejo.  Há portanto uma nítida diferença entre o afeto propiciado pelo humor e o triunfo narcísico próprio da mania, no qual o trabalho de luto não tem lugar”

(Kupermann, 2003, p.122)

O humor

Freud divide o humor em três categorias: o cômico, o chiste e o humor propriamente dito. Em todas as modalidades de humor há uma economia de despesa psíquica; é a natureza dessa despesa o que torna necessário distingui-las entre si. Nesse texto, vamos falar do humor propriamente dito.

Para Freud (1905, p. 265) o humor é um fenômeno do aparelho psíquico adulto cuja função é economizar “sentimento” de afetos tristes causados pelas adversidades do destino e do acaso na vida de um sujeito. Essa economia rende algum nível de prazer. O humor nos faz rir lá onde poderíamos sentir apenas dor.

No humor, usamos a criatividade para “desfigurar uma realidade dolorosa” (Costa). Através desse recurso, o aparelho psíquico teria menos “despesa” e o sujeito não seria completamente esmagado ou mortificado pelo peso da realidade, como acontece em casos de melancolia ou depressão profunda. Nesses casos, há uma desvitalização intensa, uma espécie de hemorragia libidinal causada por uma “lucidez mórbida”, o que acaba impedindo o sujeito de continuar no jogo da vida na medida em que emperra seu circuito pulsional.

Então podemos afirmar que as adversidades da vida, as perdas e os males do mundo, se não gerarem nada vitalizante terminarão por empurrar o sujeito com tendências depressivas ao desligamento do mundo e a deserotização da existência, causando um “curto circuito” na engrenagem desejante… O humor seria justamente um “amigo” consolador que reúne os fragmentos, que religa o sujeito à vida e ao circuito da pulsão e do Desejo.  Com a ajuda do humor, “catamos nossos caquinhos” e os ofertamos de volta à vida.

O humor e(é) o brincar

Freud argumenta que o humor adulto é uma atualização do brincar infantil, ou seja, ele não substitui a brincadeira, pelo contrário, o humor é a própria brincadeira no adulto.

Tanto o humor adulto quanto as brincadeiras infantis não constituem, por si só, uma fuga da realidade. Freud diz que a brincadeira da criança não perde conexão com a realidade, pois os objetos e situações presentes no seu brincar têm ligação com “coisas visíveis e tangíveis do mundo real”, portanto, ela continua conectada à realidade e “distingue” perfeitamente a brincadeira da realidade. O que acontece no brincar é que a criança “reajusta os elementos do seu mundo de um modo mais prazeroso”, ou seja, ela cria a partir da realidade. O adulto bem humorado, o escritor e o artista fazem a mesma coisa…

Mas não se trata de criar um mundo próprio e se isolar nele. Freud (1911) nos diz:

“O artista, por não suportar as frustrações impostas pela realidade, afasta-se dela refugiando-se no universo fantástico. Todavia, encontra o caminho de volta para a realidade, fazendo uso de dons especiais que transformam sua fantasias em verdades de um novo tipo, que são valorizadas pelos homens como reflexos preciosos da realidade”

Pode parecer paradoxal, mas a criatividade e a imaginação ajudam o sujeito a poder lidar com a realidade e não fugir dela em completo desamparo.

O humor, Ideal de Ego e Superego

O brincar adulto tem suas possibilidades abertas ou restritas pelo superego (que já falamos aqui no ABC) fortemente compreendido,  na própria psicanálise, como um “senhor severo” que nos assombra com suas exigências rigorosas e paralisantes. Ele é isso também. Uma das facetas do superego é mesmo representar “o que se deveria ser” e nos cobrar disso. Entretanto, o fenômeno do humor no adulto fez surgir na obra de Freud uma face benevolente do superego: como um pai que procura acolher e consolar um filho que se depara com seus fracassos e tropeços.

Diante dessa descoberta, Freud admitiu que “ainda temos muito a aprender sobre a natureza do superego”. O que ele até então teorizava sobre o superego foi se complexificando.

Para Freud, essa face “consoladora” do superego é a prova que um sujeito pode se supor “amado e amparado por uma instância superior”, a qual, penso eu, lubrifica sua relação com a vida, dá uma carta branca ao fracasso, uma espécie de uma autorização para seguir adiante…

Mas não podemos falar em superego sem falar de sua instância ideal, que chamamos de ideal de ego (FREUD, 1914) posteriormente nomeado também superego (1923), instância que representa tudo aquilo que o sujeito “deseja ser” em busca de uma suposta completude narcísica – esse tipo de fixação não possibilita nenhum tipo de criação e deixa o sujeito muito neurótico e empobrecido em sua relação com a vida. No entanto, o Ideal de ego  também pode estar à serviço de Eros e assim se tornar “força motriz para o psiquismo no sentido da criação sublimatória”, tendo assim um aspecto duplo e benevolente (Kupermann, p. 113)

Lacan (1938) também atribuiu a capacidade sublimatória ao Ideal de Eu, quando ele diferencia as instâncias superego e ideal de ego, dizendo que “a que recalca se chama superego, a que sublima, o ideal do eu” (p. 43)

Nesse sentido, o ideal de ego pode se apresentar como “uma instância mais amável e maternal”, sendo um agente de impulso às realizações pessoais e não necessariamente um inimigo “opressor” derivado de um superego severo e restritivo.

Segundo Kupermann: 

“É sobretudo a instância ideal que permite ao aparelho psíquico fantasiar, imaginar e mesmo investir desejantemente um tempo futuro […] na forma de um projeto de realização provocado na direção de seu ideal” (Kupermann p. 111-112)

Tudo isso nos leva a concluir que o adulto que “brinca” seria então capaz de ter, de alguma maneira, um ideal de ego mais flexível, pois o tempo todo ele está “re-criando e re-investindo seu próprio ideal de Ego”, mais ou menos como naquela frase de Guimarães Rosa: “viver é um rasgar-se e remendar-se”.  Podemos dizer que a busca pelo Ideal de Ego continua existindo, mas não é fixada em um objeto e portanto não impede o sujeito de seguir adiante mesmo aos trancos e barrancos.

Com a ajuda de um superego acolhedor, o ideal de Ego seria passível de ser tomado mais como um horizonte em direção ao qual se pode sempre caminhar aos trancos e barrancos do que  como uma obrigação intolerante, intransigente e austera.

Poder rir de si mesmo não significa que o sujeito não sinta as dores da vida. Ele não deixa de sofrer, não se torna imune ao sofrimento. Haverá momentos mais difíceis de lidar e os desafios da existência permanecem, às vezes com mais traços de bom humor e abertura para a vida, às vezes menos…A possibilidade de criação, seja pela via da arte, da escrita ou do humor é o que precisa ser mantido – mesmo com flutuações – vivo em cada um, para que possamos não morrer em vida e, assim, sobreviver a própria vida. 

Na clínica, a expressão do humor pelo psicanalista implica rir com o analisando, nunca do analisando (o que seria um deboche). É preciso “tato”, pois não se trata do analista virar um palhaço teatral, um personagem humorístico que força a barra e atropela o paciente com piadas alheias ao seu discurso. Na clínica, o humor seria algo mais espontâneo e menos controlado racionalmente pelo analista. A possibilidade criativa do analista aparecerá em alguns momentos, num certo timing,  sempre a partir do discurso e dos significantes trazidos pelo paciente. 

A capacidade de rir de si mesmo costuma ser um sinal de “melhora” na neurose, uma vez que indica “não apenas um descentramento em relação ao próprio Eu, mas também em relação aos ideais reguladores da vida social”. 

Recomendação de filme sobre o tema: A vida é bela (1997), Itália.

Referências:

Costa, G.S.P. A psicanálise diante do trauma, do humor e da esperança. Revista Brasileira de Psicanálise, volume 40, n.4 (2006)

Freud, S.  O humor. Obras incompletas de Sigmund Freud: arte, literatura e os artistas (1927) 

Freud, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905)

Freud, S. Escritores criativos e devaneio (1908[1907])

Freud, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914)

Freud, S. O ego e o id (1923)

Lacan, J.  Os complexos familiares (1938) Editora Jorge Zahar (1997)

Kupermann, D. Ousar rir: humor, criação e psicanálise. Civilização brasileira, 2003. 

Kupermann, D. Humor, desidealização e sublimação na psicanálise.  <https://doi.org/10.1590/S0103-56652010000100012 >

Patrícia Andrade

Psicanalista e psicóloga, aprimorada em Saúde Mental pelo Instituto A Casa e membro da rede Inconsciente Real

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