ABC do Inconsciente – Histeria
A histeria foi nomeada como uma doença na Antiguidade, portanto, muito antes do então jovem médico neurologista Freud. Ela era considerada como uma doença feminina (o termo histeria deriva do grego “Hystera”, que significa útero) e foi por isso que surgiram expressões populares como: “fulana teve um ataque histérico”, “isso é coisa de mulherzinha”…
Mas quais eram as manifestações que faziam os médicos diagnosticarem alguém como histérica? Na antiguidade, eram convulsões, bolos na garganta e paralisias nas quais os doutores não identificavam nenhuma causa aparente. Ao longo dos séculos surgiram outros sintomas, mas o critério permaneceu: todos eram inexplicáveis e enigmáticos aos olhos da medicina.
Foi a partir do seu contato com as histéricas no século 19 que o médico e criador da psicanálise Sigmund Freud começou a tecer sua teoria sobre o Inconsciente. Freud criou convicções a partir de suas pesquisas e combateu as ideias de seu próprio mestre Charcot, que considerava a histeria como algo hereditário e degenerativo. Escutando as histéricas, Freud constatou que elas eram “mulheres muito inteligentes” e que não apresentavam sinais de degeneração. Junto com seu colega Josef Breuer, descobriu que existia um vínculo simbólico entre o sintoma somático (do corpo) e sua causa, um traumatismo de ordem psíquica. Aos poucos, Freud desenvolveu mais ideias sobre a origem desse trauma, o que o encaminhou a pensar o complexo de Édipo e à constatação do caráter sempre traumático do encontro humano com a sexualidade. O traumatismo histérico teria a ver com uma posição sexual passiva numa cena traumática, fosse ela real ou fantasiosa. O caso Dora, o caso Anna O. e muitos outros exemplificam a problemática, mas o objetivo deste texto não é detalhar tais constatações sobre a hipótese da origem da histeria.
O que nos interessa mais aqui é saber que a histeria é descrita por Freud como um fenômeno de excessiva sensibilidade corporal (muitos sintomas são corporais e não mentais, como vimos anteriormente no post sobre a neurose obsessiva). Isso era chamado de “conversão” histérica ou complacência somática (Freud 1905, pg 40), um salto misterioso do psíquico para o somático. O psicanalista dizia que a dinâmica/origem do sintoma se dava dessa forma:
“As representações recalcadas apenas se expressam como sintomas corporais se elas puderem se conectar a perturbações somáticas e hipersensibilidades preexistentes”.
Segundo o psicanalista Serge Andre, o recalque histérico substitui algo da sexualidade orgânica para uma representação comandada pelo significante. Isso significa que, assim como na neurose obsessiva, o que o paciente precisa fazer é FALAR. Na histeria, há um deslocamento muito forte do recalque para o corpo, ao invés de ir para o mental (pensamento) como no obsessivo.
Freud foi o primeiro a realmente escutar as histéricas (mulheres até então). Ele as convidou a falar livremente sobre seus sintomas e afetos, inventando um trabalho sobre o método psicanalítico.Mas hoje não estamos no século 19 e muita coisa mudou. A subjetividade de nossa época e sociedade é outra, logo, os sintomas também mudaram. O que permanece, então? Se a histeria é uma estrutura neurótica, assim como a neurose obsessiva, o que podemos extrair dela?
“Fazer a história da histeria é atribuir-lhe sintomas que não cessam de mudar […] o que o histórico procura de fato é confundir os hábitos de pensamento socialmente aceitos, perturbar os referenciais do saber universitário pondo à mostra seus limites, seus avatares e seus percalços”.
Tanto Freud quanto Lacan sustentam que toda neurose é uma tentativa recalcada de lidar com a falta, que sempre está aí. O neurótico (histérico ou obsessivo) se organiza na dualidade falo/castração. Quanto mais empobrecida é essa dialética (repleta de ideais e de superego), mais grave é a neurose. Os sujeitos histéricos parecem saber melhor que eles não têm “o falo” (em relação aos obsessivos). Basta lembrar que a castração é uma constatação para a histérica, mas uma ameaça para o obsessivo. Mas isso não significa que a histérica não busque uma posição fálica diante do Outro. Ela também é neurótica e adoece tanto quanto o obsessivo, mas à sua própria maneira e estilo. Tanto o obsessivo quanto a histérica parecem acreditar que algo pode preencher a falta de uma vez por todas (falo). A diferença está no dialeto de cada uma, e sim, elas também podem ser muito parecidas em muitos aspectos! Freud dizia que a neurose obsessiva é um dialeto da histeria.
Segundo Lacan (1961) enquanto no obsessivo o desejo é “impossível”, no sujeito histérico (homem ou mulher) a marca do desejo é muito mais a insatisfação, o desejo que só se sustenta pela insatisfação. Uma pessoa que está sempre se queixando do que ela ainda não tem, não realizou ou não fez estará, por lógica, sempre insatisfeita, porque estará sempre olhando para o horizonte oceânico e infinito da Falta. É por isso que nossa cultura, que porta o discurso capitalista, incentiva o gozo fálico, o gozo do ter, o gozo do desejar a partir do que você não tem, não comprou, a descartar o velho apenas para comprar o novo, sem muitos motivos razoáveis para isso.
Lembrando que não estamos falando aqui de desejo disso ou daquilo, mas de desejar, simplesmente; do desejo que corre como um rio. Se você acompanha os posts do ABC do inconsciente, talvez você se lembre que o Desejo é indestrutível, que ele é parecido com a pulsão e não tem, fundamentalmente, um objeto último, de completude, logo, todos estamos “condenados”, em alguma medida, à insatisfação, sejamos histéricos ou obsessivos. Qual o problema da insatisfação histérica, então? Será que é possível responder essa pergunta de maneira satisfatória (com o perdão do trocadilho)
Os histéricos costumam formular questões que giram em torno da pergunta: o que eu sou pro Outro? O que eu preciso ser para que o Outro me deseje e me devolva fálico(a)? Assim, é comum que, quando apaixonados e não correspondidos (por exemplo), um histérico busque desvendar tudo sobre quem é a pessoa de sorte que desperta o olhar da paixão que não lhe corresponde, que trejeitos ela tem, como ela se veste, o que ela transmite….pessoa a quem consideram ser o portador da verdade sobre como encarnar os encantos da sexualidade e ser desejado pelo Outro, como se houvesse uma resposta palpável para o enigma do desejo do Outro.
Os histéricos também apresentam uma necessidade muito grande de apontar a falta no Outro, de lembrar-lhes o tempo todo de que também são castrados, insuficientes, incompletos, imperfeitos. Como se estivessem à procura de uma resposta (que não existe), resposta esta que acabaria com a falta. Desejar e procurar é preciso, mas descartar todas as conquistas uma a uma, como cartas que já não servem mais, traz muitos problemas para a vida do sujeito histérico e para quem vive com ele. Ora, se estou em busca de uma resposta que cesse todas as minhas insatisfações, que estão sempre em constante movimento e atualização, então estarei sempre insatisfeito, porque as perguntas mudam e as respostas também. Em análise o desafio é inventar um outro jeito de lidar com a própria histeria, um jeito de se implicar na dificuldade de satisfação e não uma série de repetições onde se idealiza o campo do outro em busca de uma inteireza de si. Do que será que alguém foge ao fugir da satisfação? Deixo aqui uma estimulante pergunta de múltiplas respostas.
Patrícia Andrade
Psicanalista e psicóloga, aprimorada em Saúde Mental pelo Instituto A Casa e membro da rede Inconsciente Real
Bibliografia:
Lacan, J. (1960-1961). O Seminário, Livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, pg. 353
Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: O legado de Freud e Lacan. Jorge Zahar. 1996.
Freud, S. (1996d). Notas sobre um caso de neurose obsessiva. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em 1909).
Huberman, D. A invenção da histeria. Editora Contraponto.
Andre, S. O que quer uma mulher?