ABC do Inconsciente – O desejo em Lacan

ABC do Inconsciente – O desejo em Lacan.

Entre os lacanianos, não há uma compreensão unívoca sobre o conceito de desejo. Seguiremos aqui com a interpretação que encontramos em Alfredo Eidelsztein  e Vladimir Safatle.

Quando falamos de Desejo em Lacan, não devemos confundi-lo com a Vontade, com aquilo que dizemos conscientemente que “queremos”.

A noção de desejo é inconsciente e tem a ver com conflito. Podemos dizer que desejo é conflito e que sempre “dá trabalho”, pois envolve não apenas ganhos, mas também perdas e renúncias que nos tiram a sensação de inteireza de si para nos colocar em plena divisão. Temos notícias do Desejo quando nos deparamos com uma situação na vida na qual nos sentimos divididos entre uma escolha A e uma escolha B, por exemplo, quando não podemos nos achar inteiros e plenamente confortáveis nem em A e nem B. Queremos as duas coisas (ou mais) ao mesmo tempo, pois assim seria mais confortável para nós. E então, como dizer o que desejo, se o que eu quero é muito mais do que A ou B?

É importante dizer que enquanto humanos nós sempre fazemos apelos dirigidos ao outro, que são as demandas de amor (inconscientes). Até mesmo nossas necessidades vitais e biológicas se realizam através de demandas de amor, ou seja, elas deixam de ser puramente necessidades instintivas e passam a se articular ao outro em forma de demandas, e toda demanda é uma demanda de amor… As demandas, sempre inconscientes, costumam se esconder naquilo que conscientemente pedimos ou queremos ao outro, como atenção, exclusividade, disponibilidade etc e elas estão articuladas com o desejo, mas eles não são a mesma coisa. Isso porque o desejo é inapreensível, não há demanda que preencha e “pause” o circuito do desejo. Quando um desejo supostamente se realiza, já é outra coisa que desejamos e assim por diante.

Em análise, podemos construir algum saber sobre nosso desejo através de boas perguntas e pontuações vindas do analista e do próprio analisante. Por exemplo, podemos perceber que sempre desejamos a partir de um mesmo lugar e acabamos caminhando sempre para um mesmo lugar, caindo em repetições sem sentido e que não conseguimos evitar por algum motivo.

O propósito de uma análise é “ajudar” o paciente a se haver com esse circuito chamado Desejo e poder caminhar com ele para muitos lugares diferentes, sem ficar refém de certos ideais, porque são eles que aprisionam e deprimem o neurótico, a ponto de produzir paralisações no circuito do desejo, quando o sujeito se vê ”querendo não desejar nada”: mas querer não desejar também é um desejo. É o caso de sujeitos muito deprimidos;  também estão nesse espectro aqueles que não estão necessariamente deprimidos, mas que optaram por uma vida asséptica, com o mínimo de conflito possível e o máximo de rotina e previsibilidade, onde nada entra e nada sai, tudo permanece sob máximo controle e não há espaço para questionamentos existenciais. Nesses casos, não há espaço para movimentações nem transformações. Alguns sujeitos se adaptam a isso a ponto de nem se darem conta da vida que levam e tampouco se queixam sobre isso. A esses podemos chamar talvez de normalopatas, devido a falta de conflitos em suas vidas e a excessiva adaptação a que se submeteram. Geralmente quem sofre e se queixa dessa vida excessivamente normal são as pessoas que convivem com essa pessoa, mas não ela própria. Podemos dizer que pra sujeitos normalopatas o “ideal” é a ausência de conflito, a previsibilidade das coisas e seu estado de sob controle absoluto.

Os ideais reduzem muito nossas possibilidades de percurso, de viver e de nos envolver com as pessoas, com a vida e suas contingências. Quando nossa capacidade de desejar é sequestrada pelos nossos ideais,  a qualidade e a diversidade de nossas experiências é afetada. Mas são justamente as experiências que propiciam o pulsar necessário do desejo, através delas podemos sentir por onde nosso desejo passa no momento, onde ele se engancha e onde nem tanto. Conflito e movimento metonímico. Talvez essas sejam as três palavrinhas mágicas e essenciais para falar sobre o desejo.

 

Patrícia Andrade

Psicanalista e psicóloga, aprimorada em Saúde Mental pelo Instituto A Casa e membro da rede Inconsciente Real

 

Bibliografia:

Eidelsztein, A. O grafo do desejo. Toro editora.
Safatle, V. A paixão do negativo: Lacan e a dialética. Editora UNESP.

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