ABC do inconsciente – Quem é Charlatão?

ABC do Inconsciente – Quem é charlatão. Fim da série sobre análise leiga

Chegamos ao fim de nossa série imersiva  – espero que didática – no texto ”A questão da análise leiga”. Nestes últimos dois capítulos, Freud termina a série de perguntas e respostas sobre a questão da análise leiga. Nos posts anteriores sobre esse texto, Freud explicou muita coisa sobre os fundamentos da Psicanálise e seu método. Agora, já no final do texto, surgem os argumentos mais políticos sobre a regulamentação dessa prática, em que o autor apresenta seus mais fortes argumentos consistentes em defesa da análise leiga, ou seja, de que a prática analítica não deveria ser praticada exclusivamente por médicos. Por que os médicos deveriam ter o direito hegemônico de exercer essa prática se o que se aprende na formação médica seria mais ou menos o contrário do que um psicanalista deve saber como preparação para a Psicanálise?”  (p. 264) Ele não diz com essas palavras, mas critica a hegemonia tentacular do saber médico e o caráter arrogante que muitas vezes encontramos nestes profissionais. Alguns deles podem ter interesse na vida psíquica e buscar uma formação em Psicanálise para aprender o que não sabem, mas outros, talvez muitos, apenas exerceriam a atividade sem muito empenho nos estudos e na formação. 

“Ninguém que não tenha sido habilitado para tanto através de uma formação específica deva exercer a análise. se essa pessoa é um médico ou não, parece-me secundário” (p. 269)

Deixar esse poder única e exclusivamente nas mãos dos médicos e impedir que outras pessoas tenham acesso a essa atividade? Freud não se animava com essa ideia e lhe interessava muito mais, como tentativa de garantir a qualidade do tratamento analítico, que houvesse uma obrigatoriedade de formação a todos os que quisessem tornar-se psicanalistas, fossem eles médicos ou não médicos. Para ele, qualquer um  que empreendesse um tratamento (analítico) sem possuir os conhecimentos e as habilidades necessárias para tanto poderia ser considerado um charlatão, mesmo que tivesse um diploma de médico. Para ser um analista, seria preciso, necessariamente, aprender sobre o inconsciente e submeter-se a uma análise pessoal, supervisão e estudo teórico. Ele argumentava que não fazia nenhum sentido obrigar que psicanalistas sejam também médicos, pois o estudo da medicina seria um desvio longo e desnecessário para este. Mas o médico, este sim deveria passar por uma formação em psicanálise, na qual ele estudaria assuntos com os quais não se defrontam em sua atividade, mas que Freud considerava essenciais ao psicanalista, como história da cultura, mitologia, psicologia da religião e ciência da literatura! (lembram do conceito de grande Outro? Então, esses estudos sugeridos por Freud compõem o que podemos chamar de grande Outro, aquela alteridade que já existe antes mesmo de nascermos e que banha o rio no qual somos mergulhados ao nascer…)

Freud diz explicitamente que não deseja que a psicanálise seja engolida pela medicina, porque ela poderia ter outros destinos para além de ser utilizada no tratamento do adoecimento neurótico. Como psicologia do inconsciente, ela  poderia ter outras aplicações para ciências que se ocupam da história da formação da cultura humana e de suas grandes instituições, como a arte, a religião e a organização social,  de modo que “seria injusto sacrificar todas as outras aplicações em favor dessa única, apenas porque essa área de aplicação toca o círculo dos interesses médicos”. Esse saber, bem como sua prática, não deve ser monopólio de ninguém. 

Para fortalecer a consistência dessa posição, todo psicanalista deve trabalhar para que cada vez mais pessoas reconheçam que esse saber não é fundível a outros interesses e rivalidades. A rivalidade que busca hegemonia quer poder e não saber. O saber divide poderes e autoridades e, consequentemente, mexe  com a “reserva de mercado” do nicho, terreno perigoso de adentrar agora…

Vale lembrar que Freud aconselhava, inclusive, que houvesse uma interlocução entre médicos e analistas pois nem todo sintoma que parece uma neurose é psicogênico, podendo ser somático, secundário. Essa seria uma boa maneira de se trabalhar por um paciente; descartada a hipótese de doença médica, a análise seria o caminho. Qualquer sintoma dúbio entre mental e físico deveria ser consultado um médico, mesmo se o próprio analista fosse um médico.

Que a Psicanálise possa estar sempre nas mãos de todo aquele que aceite se submeter às exigências básicas de uma formação.

 

Patrícia Andrade

Psicanalista e psicóloga, aprimorada em Saúde Mental pelo Instituto A Casa e membro da rede Inconsciente Real

 

Bibliografia:

Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Obras Incompletas de Sigmund Freud;  Editora Autêntica. A questão da análise leiga, parte final

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