ABC do inconsciente – sexualidade infantil: um escândalo?

ABC do Inconsciente – Sexualidade infantil: um escândalo?

No texto “A questão da análise leiga”, Freud aborda com seu interlocutor o tema do reconhecimento da sexualidade infantil pela Psicanálise na sociedade européia do século XIX. A sexualidade infantil sempre foi do conhecimento de pediatras, babás, pais e mães, mas, segundo o autor, sempre fora tratada com rígida repressão e ignorância. Ele critica sua sociedade por se prender excessivamente a parâmetros sentimentais, religiosos e morais para tratar do assunto, que para o autor era apenas mais um objeto para a ciência, para conhecer mais o humano. Ele analisa esse apelo a sentimentos ao invés de argumentos como típicos de uma sociedade neurótica, aprisionada a ideais rígidos que a impedem de lidar com uma verdade pouco conveniente. É por isso que o autor afirma com segurança que:

“(…) não existe nenhuma beberagem, por mais absurda que ela seja, que a sociedade não engoliria de bom grado se ela fosse vendida como sendo um antídoto contra a temida supremacia da sexualidade” (p. 235)

Para nós, humanos, não basta apenas nascer, pois só sobrevivemos se existir alguém suficientemente dedicado aos nossos cuidados e a nossa sobrevivência – física e psíquica. Desde bebês até uma certa idade, somos constantemente tocados, manipulados por alguém, desde na mãozinha e na perninha até os genitais na hora do banho e da higiene. Vergonha, nojo e moralidade não existem nesse estágio.

Do que se trata a vida sexual infantil? Freud classificou a sexualidade infantil como perverso-polimorfa (no texto de 1905), afirmando que é normal e saudável que toda criança seja capaz de experimentar prazer de múltiplas formas, em diversas zonas do corpo e com diversos objetos. Pode parecer escandaloso, mas é porque nós, adultos, já temos uma outra visão do sexual.

Crianças são curiosas e estão começando a experienciar o mundo e o próprio corpo, antes mesmo de terem consciência de que possuem um corpo, antes mesmo de terem noção de que existe um eu e um outro. Tudo é sensação, satisfação-prazer ou insatisfação-desprazer. Ter um corpo é, portanto, estar vulnerável a experiências corpóreas, prazerosas e desprazerosas.

Com o tempo, já mais crescidinhas do que um bebê, é natural que crianças comecem a mexer e conhecer os próprios genitais (e reparar no dos adultos também). Nessa curiosidade, acabam estimulando o próprio genital e descobrindo que isso gera prazer (masturbação). Qualquer um que já tenha criado uma criança sabe disso. Tal atividade costuma ser tratada como “pecado” e tratado com rigidez mesmo nos dias atuais; para a criança, entretanto, masturbar-se é apenas algo divertido…

E não há só o prazer genital, mas também o oral (chupar o dedo, engolir, beijar, pôr objetos na boca) e o anal (fazer cocô, eliminar, reter).

Nossas primeiras vivências e sensações corporais serão o início da nossa experiência no mundo e na relação com Outro*. Aos poucos, também pela demanda e exemplo do Outro, vamos “organizando” nosso Eu e nosso corpo em determinadas funções de modo a corresponder às expectativas que o Outro tem sobre nós. É assim que vamos “aprendendo” a ter um corpo, o que devemos supostamente fazer com ele, quando e como! Isso inclui: xixi, cocô, masturbação, limpar o nariz… E brincar com cocô, pode? Freud nos lembra que, na criança, é necessário bastante tempo até que o asco (pelas próprias fezes, xixi, secreções) se instaure. Realmente, dá pra imaginar quão complexa é a operação psíquica de compreender que as fezes, ao mesmo tempo em são tão pedidas e até mesmo comemoradas pelos adultos (vamos, você tem que fazer cocô, filho!! eba!! você fez cocô), também são odiadas com nojo e repreendidas em outros momentos, e já não funcionam mais como um presente que agrada ao Outro.

Freud vai ainda mais longe em suas revelações, ao afirmar – apresentando fundamentos – que os primeiros desejos sexuais das crianças são incestuosos, pois estas direcionam seus desejos sexuais (dentro dos limites da imaginação infantil, que não sabe do ato sexual) para as pessoas mais próximas que lhe são aparentadas, de maneira geral mãe, pai e irmãos, sendo a mãe (ou quem estiver nesta função) o primeiro objeto de amor tanto da menina quanto do menino, e tipicamente a figura parental do mesmo sexo da criança seria tida com rival, pois ela quer uma relação exclusiva com seu objeto de amor, sem ninguém para atrapalhar. É comum crianças idealizarem seu objeto de amor, parecerem apaixonadas por sua mamãe ou papai, querendo-os todos para si. É essa a configuração da trama anímica do Complexo de Édipo.. Essa trama deverá ser abandonada e transformada, de modo que o agora adolescente possa direcionar seus interesses sexuais para fora da família, para o mundo externo. Esse tema não será aprofundado neste texto, sendo apenas mencionado por Freud como um dos representantes da sexualidade infantil.

Para fortalecer seus argumentos de que a proibição do incesto nunca foi algo inato na sociedade, o psicanalista usou como máxima a lenda grega de Édipo, e também se dirigiu à História, citando como exemplo Cleópatra (que se casou com seu próprio irmão, Ptolomeu). Relações amorosas entre pai e filha e mesmo entre mãe e filho também foram relatadas nos mitos de outros povos, não apenas os gregos. Freud é tão curioso quanto engraçado, e diz a seu interlocutor “tanto a cosmologia quanto a genealogia das dinastias reais são fundadas a partir do incesto. Com que intenção o senhor (interlocutor) acha que essas narrativas foram criadas? Para cunhar deuses e reis como criminosos e atrair para si a aversão da raça humana? É mais provável que seja porque os desejos incestuosos são uma herança humana dos primórdios e nunca foram superados totalmente, de modo que ainda se aceitava a sua realização para os deuses e seus descendentes, quando a maioria dos humanos comuns já tinha de renunciar a eles. Em tal consonancia com esses ensinamentos da Historia e da Mitologia, ainda hoje vemos o desejo incestuoso pesente e atuante na infancia do individuo” (p. 243)

Freud termina esta quinta parte do texto com uma excelente questão para nos provocar:

”Como se comportar diante da atividade sexual da primeira infância? Sabemos da responsabilidade que assumimos quando reprimimos essa atividade, mas ao mesmo tempo não temos coragem de deixá-la fluir ilimitadamente’’ (p. 247)

O que podemos dizer com base no que lemos até agora é: qualquer criança se masturba, desde muito cedo. A criança precisará de alguém para se adequar minimamente a sociedade e suas exigências. Tudo que aprendemos vem do Outro, dependemos de sua existência para nos constituir e obter nossas primeiras noções de mundo e padrões de comportamento. Alguém precisará promover condições para que a criança participe do laço social e ter noções básicas de adequação e inadequação social. Freud falará mais sobre as relações entre neurose e sexualidade nas próximas páginas. Por hora, fiquemos com isso!

 

Patrícia Andrade
Psicanalista e psicóloga, aprimorada em Saúde Mental pelo Instituto A Casa e membro da rede Inconsciente Real

 

Bibliografia:

Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Obras Incompletas de Sigmund Freud;  Editora Autêntica. A questão da análise leiga, parte IV

Vocabulário de Psicanálise Laplanche e Pontalis. 2001, Martins Fontes.

Freud; Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, 1905. 

 

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