Falei na Psicanálise: “Minha família é complicada.”
Entre as críticas da teoria psicanalítica, por muito tempo e até hoje, temos a que relaciona a psicanálise a um certo tipo de família burguesa/conservadora. A teoria do Complexo de Édipo freudiana abriu um caminho para interpretações equivocadas quanto a sua lógica, e a partir daí criou-se o clichê da “família papai, mamãe e filho/falo”. A verdade é que já com Lacan tal interpretação deixa de fazer sentido, a partir de sua teorização sobre as funções que estes personagens ocupam. Sendo assim, torna-se mais importante aquele lugar enquanto função, materna ou paterna, do que quem ou o que a ocupa. De forma muito resumida podemos dizer que a função materna é aquela que se ocupa investindo e cuidando da criança. Dessa forma, pode ser ocupada pela própria mãe, ou pelos avôs, ou pelo pai, por uma instituição, etc. Já a função paterna é aquela que introduz a lei social – contornos, limites proibições, exigências e expectativas da sociedade – por estar também atravessado por essa mesma lei, podendo ser ela ocupada pelo pai, pelo trabalho, pela mãe, pelos tios, e hoje em dia, porque não, pelo Google…
Mas não sejamos levianos, pois isso não significa dizer que os personagens carnais que ocupam essa função não têm importância. Pois os personagens dessas funções são pessoas, e assim estamos lidando também com identidades, boas ou não, morais ou não, negligentes ou não, afetuosas ou não, violentas ou não… E por aí podemos calcular a complexidade dessa equação.
A verdade é que não existe laço afetivo pré-estabelecido, ou seja, todo afeto que temos pela nossa família é construído. Sendo assim, um laço pode nunca ter se constituído, ou, até mesmo, ter sido desconstruído. “Mas será que deve?” perguntam os mais conservadores. Nós já diríamos que tal resposta só pode ser respondida de forma muita individual e subjetiva, junto com um trabalho importante de elaboração.
Uma reportagem recente da BBC discorre sobre “por que cada vez mais filhos cortam laços com os pais por saúde mental”. Importantíssima e respeitosa matéria, onde são analisados diferentes contextos de rompimentos e os efeitos de suas decisões. Vemos claramente tal fenômeno no Brasil, e o que podemos dizer é que ele não é nem bom nem ruim por si só. Rompimentos familiares sempre existiram. Que família não tem uma história de irmãos que não se falam desde os trâmites da herança?! Ou de tios que se isolaram, e até de parentes renegados?! O que se apresenta como novidade nesse momento é o motivo: saúde mental. Talvez em épocas anteriores já houvesse rompimentos por “saúde mental”, a. O que vemos hoje são pessoas tomando essa decisão de forma declarada e esclarecida. Mas ainda assim, é uma decisão cujas consequências podem não ser fáceis de lidar… Se por um lado temos alívio em perceber que pessoas podem sim escolher seus laços e se desvencilhar de famílias devastadoras, onde limites foram ultrapassados e existem diferenças inconciliáveis; por outro, vemos a atualíssima discussão sobre como hoje obtemos ferramentas que nos possibilitam termos relações cada vez mais rasas, descartáveis, que não suportam o mínimo de diferença, que não sabem o que fazer com quem não é igual.
Acreditamos que o que podemos fazer diante de tal fenômeno é: respirar fundo, e entender que, tanto para o rompimento quanto para a sustentação, as pessoas são diferentes, que violências não podem ser toleradas, e que o laços familiares são sempre nosso primeiro objeto de amor, e assim são as relações que de certa forma fazem referência a todas as outras. Famílias são difíceis, e nós também somos. Famílias podem ser sim devastadoras, mas também podem ser porto seguro. Que possamos ter com nossas famílias a paciência que gostamos que tenham conosco, e que possamos escolhê-la, sempre! – até mesmo quando já nascemos dela.
Ingrid Valério
Psicanalista, psicóloga com especialização em Clínica Psicanalítica pelo IPUB/UFRJ, membro da rede Inconsciente Real e do grupo de estudos “Seminário 5”.
Referências:
– https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-59656561
– https://www.youtube.com/watch?v=2coFPLWn4_4