ABC do Inconsciente: Sintoma

ABC do Inconsciente: Sintoma. “Não podemos fugir de nós mesmos”

Após descrever o aparelho anímico, agora Freud nos fala sobre sua dinâmica, sobre as forças que se relacionam com o Eu e o Isso e como elas interagem entre si. O autor é tão didático que, para nos ajudar a acompanhar seu pensamento, usa como exemplo o que podemos facilmente observar nas crianças. Segurem um pouco essa nota, pois antes é preciso que vocês sejam apresentados ao conceito de pulsão.

O Eu e o Isso não são partes opostas, pois não se trata de colocá-los nesses termos como se eles pudessem ser localizados em nosso cérebro ou em nosso corpo. Eles seriam o que vai compor nossa experiência de corpo e de linguagem enquanto seres humanos, e é por isso também que pulsão não é sinônimo de instinto. Se somos humanos, seres de linguagem, tudo muda. Não sendo elas forças opostas, só conseguimos diferenciar as tendências mais pulsionais (Isso) das mais sociais (Eu) quando adoecemos, pois enquanto saudáveis essas partes fluem sem chamar a atenção, a vida não parece cindida.

A pulsão seria uma força proveniente do Isso (lembrem que o Isso é a parte de nós que não conhece a moral, a lei e a civilidade) e essa força, a pulsão, tem de conversar com o Eu, que por sua vez é a parte de nós em que somos habitados pela alteridade, as normas sociais e a lei, logo, a conciliação entre essas duas partes não é tarefa simples. A pulsão busca satisfação, ela quer diminuir a tensão que sua própria existência provoca. Somos dividimos justamente porque somos habitados por mais de uma influência, por isso ser humano é tão conflitante, a ponto de podermos sentir ao mesmo tempo prazer e desprazer perante uma coisa, ideia, pensamento, imagem, objeto, lembrança e tudo que é da ordem da experiência humana.

Segundo Freud, o Eu tem a tarefa de mediar as necessidades do Isso, que pressionam em busca de uma satisfação imediata, irrestrita, mas que é anti social, prejudicial a nossa própria imagem perante os outros e a sociedade, que também importam a nós.

Resumindo, o Eu refreia a busca por uma satisfação cega e fissurada do Isso, suas paixões, sendo capaz de regular as pulsões para que adiem sua satisfação ou que modifiquem os seus objetivos, negociando com ela para criar algo que a contemple ao mesmo tempo que não seja danoso ao indivíduo e a sociedade. A capacidade criativa do eu consiste em produzir modificações que possibilitam a satisfação da pulsão sem se entregar a recursos devastadores. Embora Freud não fale nesses termos, pode-se dizer que é a capacidade de ser-na-linguagem o que possibilita que não sejamos instintivos mas pulsionais e mais “flexíveis”.

Agora, sim, podemos falar da infância. Desde que nascemos vamos, aos poucos, aprendendo conscientemente que não podemos viver em busca apenas do prazer absoluto (sem considerar nada nem o outro). Viver assim seria equivalente ao que Freud nomeou “Princípio do prazer”. Felizmente temos também o “Princípio de realidade”, o qual levaria sim em consideração a alteridade, a lei e o mundo externo.

A infância seria o momento da vida no qual o Eu estaria começando a se organizar e a receber informações sobre o mundo e seu funcionamento. Freud afirma que as forças pulsionais da criança, do Isso, são naturalmente mais violentas e danosas ao meio social, cabendo aos adultos a paciência e a transmissão das vantagens de se estar no laço social. Sendo o Eu da criança mais precário, suas reações seriam mais descompensadas. Segundo Freud:
“O eu tem então essa capacidade de tomar decisões equilibradas para saber quando é melhor dominar-se e se curvar diante da realidade ou tomar partido e defender-se do mundo exterior”
No adoecimento neurótico teríamos o famoso recalque, essa espécie de tentativa de afastar o que é incômodo demais para o Eu, mas que habita o sujeito. Freud diz que no recalque o sujeito tenta fugir de algo de si próprio como se se tratasse de algo externo e não interno. É aí que o autor afirma categoricamente que “não se pode fugir de si mesmo”. Mas ele adverte: a pulsão continua dentro de nós, pois jamais esteve fora, e passa a trilhar seu próprio caminho, buscando compensação, produzindo derivados psíquicos que a representam e acabam por chegar ao Eu em forma de sintoma, de maneira estrangeira. É quando nos sentimos invadidos por algo estranho, muitas vezes sem pé nem cabeça, mas que insiste em nosso cotidiano…

Acompanham? Por não conseguirmos conciliar uma força (pulsão) dentro de nós com a realidade e tudo que nos importa nela (nossa imagem perante o outro, a lei, a moral) fazemos o sintoma, que é uma solução de compromisso entre as partes do Eu e do Isso.

É como se Freud dissesse: não existe mágica! Aquilo que tentamos ignorar retornará por outras vias e com recursos mais insolentes e inconvenientes ao Eu, mas convenientes a pulsão, e elas perseguem sua satisfação sem considerar os interesses do Eu.

Recapitulando: o Eu tem o papel de refrear as forças pulsionais, busca tornar possível que adiem sua satisfação ou modifiquem os seus objetivos, desde que se crie algo que a contemple. Isso será bem vindo desde que não seja danoso ao indivíduo e sua vida em sociedade. A capacidade criativa do Eu consiste em produzir modificações que possibilitam a satisfação da pulsão sem prejuízos devastadores para si.

Freud fala do neurótico como alguém que foge do conflito causado por diferentes influências que o habitam. O objetivo da análise, para ele, seria poder ajudar o paciente a suportar o conteúdo recalcado e encontrar maneiras mais criativas de lidar com o conflito, ao invés de tentar fugir dele. Para isso, seria necessário “fortalecer” o Eu, e a grande questão seria, o que seria fortalecer o Eu numa análise? Será que o psicanalista Jacques Lacan (uma enorme influência para nós, analistas da rede Inconsciente Real) concordaria isso?

 

Patrícia Andrade
Psicanalista e psicóloga, aprimorada em Saúde Mental pelo Instituto A Casa e membro da rede Inconsciente Real

 

Bibliografia:
Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Obras Incompletas de Sigmund Freud; Editora Autêntica. A questão da análise leiga, parte III
Vocabulário de Psicanálise Laplanche e Pontalis. 2001, Martins Fontes.

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