ABC do Inconsciente: Aparelho psíquico e prática clínica?
Atenção: continue lendo o texto até o final, mesmo que o começo pareça nebuloso! Primeiro apresentaremos algumas ideias de base (bastante abstratas), mas ao longo do texto você encontrará elucidações e exemplos.
A segunda questão que surge no texto de Freud ”A questão da análise leiga” é: quais são as intenções do psicanalista em relação a análise do paciente e o que ele faz? O que queremos de um doente e de que modo podemos alcançá-lo?
Para iniciar a tentativa de responder a esta questão, o autor começa apresentando sua concepção de estrutura do aparelho psíquico, pois considera fundamental esclarecer de que premissas e bases parte um psicanalista, antes de falar sobre o que se faz propriamente. Ele chegara a tal concepção através de seus estudos baseados na prática clínica, ou seja, escutando seus pacientes.
Nesse momento Freud nos entrega uma concepção descritiva do aparelho psíquico, sem explicar muito bem como funcionaria a dinâmica entre suas partes. Nessa concepção haveria o Eu, sendo ele o aspecto da organização psíquica que se orienta por estímulos sensoriais e a percepção das necessidades do corpo e os atos motores que fazem a mediação entre eles com determinada intenção, por exemplo, o ato de mexer uma perna voluntariamente. É como se o Eu fosse um órgão que pode receber estímulos tanto de fora (da realidade, do mundo exterior) quanto de ideias mais profundas do aparelho psíquico, como o Isso. A consciência seria o fenômeno que surge na mente de cada um a partir desses estímulos externos e internos e suas provocações, necessidades e quereres (lembrando: nem todos conscientes).
O “Eu” se relacionaria mutuamente com o “Isso”. Eles não existem concretamente em algum lugar do nosso cérebro; são descrições teóricas para explicar modos de funcionamento que compõem a dinâmica consciente-inconsciente. (teorizados por Freud baseado em sua própria prática clínica). Para facilitar o entendimento e a didática, podemos chamá-los de camadas do aparelho psíquico. O “Isso”- cujo nome impessoal não é a toa, pois muitas vezes, popularmente, dizemos que ”havia isso dentro de mim, que foi mais forte do que eu” – seria composto por certas “forças” a serem consideradas pelo Eu, compondo uma relação triangular Eu – mundo externo ou realidade – Isso.
O Eu portanto tem partes conscientes, mas não só. Ele também seria influenciado por profundezas desconhecidas, advindas do Isso, que tem suas necessidades tanto quanto o mundo externo tem suas expectativas e até exigências sobre nós. Freud dá um exemplo muito bom para compararmos o Eu e o Isso: O que acontece no front de guerra e o que acontece antes dele, em seu interior. Ele diz:
“..o eu persegue outros objetivos e com outros recursos […] no front muitas coisas aconteciam de modo diferente se comparadas ao interior, e que no interior se permitiam coisas que no front tinham de ser proibidas. A influência decisiva era evidentemente a proximidade do inimigo, para a vida anímica é a proximidade do mundo externo” (Freud, pág 220)
Essas ideias são importantes porque é a partir delas que podemos falar em conflitos e em neurose. Se o Isso é o lugar onde não há conflito, onde não há regras, moral ou civilidade, o mundo externo é o que vai capturar o Eu e originar um conflito de interesses, que nem sempre entram em comum acordo: é quando nos vemos neuróticos, sem conseguir continuar caminhando, travados diante de algo sem saber o motivo. Esse momento gera angústia e sofrimento mas também é fértil e propício para se começar uma análise, formular questões sobre si, sobre o que sabe e também o que não se sabe sobre si mesmo (para resgatar e articular um pouco o que aprendemos no texto anterior). Uma pista para pensar a neurose é dada por Freud quando ele diz que o Eu é uma organização caracterizada por um anseio muito curioso por unificação, por síntese, ao mesmo tempo em que para viver e tomar decisões é necessário descartar uma ambição em benefício de outra (perder algo). Essas ambições, posso acrescentar, nem sempre são conscientes e podem ser diversas, como por exemplo a sustentação de uma imagem de si (quem eu sou) que reivindicamos ser íntegra, unânime e estável como uma pedra, tal como uma definição.
Freud também apresenta uma nova exigência para aqueles que queiram aplicar análise em outras pessoas: que primeiro se submetam a uma análise, para experimentarem essa experiência no próprio corpo, na própria alma, como forma de adquirir convicções sobre o próprio método que pretendem praticar.
Patrícia Andrade
Psicanalista e psicóloga, aprimorada em Saúde Mental pelo Instituto A Casa e membro da rede Inconsciente Real
Referências bibliográficas
Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Obras Incompletas de Sigmund Freud; Editora Autêntica.