Sobre a uberização da saúde mental

Sobre a uberização da saúde mental.

Nós que atuamos com saúde mental desde antes da pandemia, acompanhamos com certa satisfação o boom sobre o tema e vivenciamos com grata surpresa a possibilidade de realizar os atendimentos online em larga escala sem grandes prejuízos técnicos (na maioria dos casos). 

Muito sobre o tema ainda está por vir, mas gostaria de chamar a atenção para algumas iniciativas que vêm surgindo a partir dessa movimentação para o online. A área virou um nicho de mercado e palavras como startups, plataformas, sites, salas virtuais, algoritmos, IA passaram a ser cada vez mais comuns. A psicoterapia e até a psicanálise se transformaram num produto e pacientes ou analisandos foram transformados em clientes. 

Aí começam as questões. Aparentemente, o acesso é facilitado com a mediação da Internet e os valores são mais acessíveis. Profissionais são ofertados como em aplicativos de encontros ou de viagens de carro com seus respectivos honorários para cada bolso (aqui já se perdendo a questão do significado do valor e da individualidade do contrato com cada paciente, entre tantas outras questões em torno do aspecto financeiro – quanto você investe em você? Isso é fácil ou difícil? O que é muito e o que é pouco para cada um?) 

Em alguns sites, você não precisa nem se identificar para receber atendimento. Isso por si só não deveria chamar a atenção num serviço de saúde mental? Vamos percebendo que a roupagem moderna de respeito e desserviço começam a se confundir… Outra questão é a associação e recorrência de palavras-chave como “ajuda”, “orientação” e similares (problemáticas, pois a prática nada tem a ver – ou não deveria ter – com assistencialismo ou aconselhamento). 

Junto com isso, vemos a oferta de pacotes cada vez mais criativos e elaborados tais como combos de fast-food e de mensalidades de tarifas bancárias, que começam a concorrer entre si no novo mercado: “por mês você tem direito a “x” videochamadas, “x” conversas de texto, até “x” contatos por dia, será respondido em “x” minutos, de qualquer lugar do mundo, 24 horas por dia” e por aí vai… Quem oferece mais por menos leva o “cliente”. 

Com isso, nessa lógica de produto e imediatista, ao tentar ser “melhor”, mais “vantajoso”, mais “completo”, mais “rápido”, acaba-se sendo e oferecendo o pior, pois reduz o sujeito ao lugar de “cliente exigente” e perde-se a oportunidade de deixar surgir espontaneamente demandas, questões singulares e material de análise de cada um (Sinto que preciso falar mais com você, Não consigo falar, posso escrever? Gostaria de aumentar ou diminuir a frequência das nossas sessões, Vamos colocar ou tirar a câmera? Vamos nos encontrar presencialmente?) Ao contrário da lógica proposta, também pode ser importante saber esperar a próxima sessão e o seu horário para falar, quem disse que ter alguém disponível o tempo todo é bom? 

Como se medem os resultados e alcances dessas iniciativas? Qual o nível de aprofundamento ou mudança subjetiva? Como não pensar que essas estratégias podem ter apelo, mas na prática tendem a ser tão superficiais e inócuas quanto a autoajuda e podem confundir e até piorar problemas de saúde mental, por poderem até dar um alívio imediato, mas que no entanto não perduram nem transformam?

Claro que existe público para tudo e pessoas com perfis e necessidades diferentes, mas não dá pra atuar com saúde mental seriamente sem levar em conta questões como vínculo, tempo, recuos e avanços, contratos individuais, formação sólida do profissional. 

Resumindo: não tem almoço grátis. Cada caso é um caso, não tem fórmula mágica que vale para todos, não existem atalhos para “melhorar” mais rápido – seja lá o que isso signifique para cada um, nem prometer que não vai haver desconforto em olhar pra si (olha o anonimato aí!). Quem está oferecendo isso, não tem experiência na área, quer surfar nessa onda e provavelmente está vendendo gato por lebre. Em se tratando de sua saúde mental fique atento, preze pela qualidade e não caia nessas armadilhas.

 

Paula Prates

Psicanalista e psicóloga, mestre e doutora pela Faculdade de Saúde Pública da USP, diretora do Coletivo Feminista Sexualidade Saúde e coordenadora da Rede de Psicanálise Inconsciente Real

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