Dezoito de maio. Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
Momento oportuno para lembrar de não esquecer o que nunca deveria ter acontecido: o encarceramento da loucura como “tratamento” e a afirmação de uma lógica manicomial na própria cultura. Temos que nos fazer as perguntas possíveis e impossíveis: como podemos dar atenção ao sofrimento mental agudo sem cair nas “soluções” fáceis e rápidas, porém desumanizantes, que a sujeitam o outro no que chamamos de “instituição total”?*
Instituições totais são aquelas que tomam conta da totalidade da vida de um indivíduo, o qual passa a viver em tempo integral numa instituição, excluído permanentemente da sociedade e de qualquer forma de laço social. Muitas vidas acaba[ra]m sendo “mal-tratadas”, encarceradas e dopadas. Essa lógica levou pessoas a adoecerem cada vez mais, esvaziando seus recursos e potências, como por exemplo: a capacidade de se movimentar, de pertencer a algum grupo no laço social ou simplesmente sair, ver pessoas, trabalhar, estudar etc.
Todo profissional de saúde mental deve pensar numa direção de tratamento que leve em conta o comprometimento apresentado pelo paciente, mas sem deixar de estimular a produção de algum nível de pertencimento e socialização. A partir dessas premissas éticas e democráticas poderá trabalhar para que até os pacientes considerados mais graves possam pertencer ao mundo e existir de acordo com suas possibilidades, levando em conta a singularidade de cada sujeito e de cada caso. A instituição total, principalmente a longo prazo, é uma resolução absoluta, fechada e encerrada em si mesma. Se vidas são pessoas e pessoas estão, a priori, inseridas na sociedade, em sua lógica, em seu sistema de produção, em seus ideais e seus preconceitos, então a loucura precisa ser pensada e repensada diariamente para ser inserida na Pólis e não excluída dela. É com esse desafio que teremos que lidar se quisermos lutar por uma democracia antimanicomial.
O juízo que paira no imaginário social sob a imagem de um indivíduo “desajustado” é potencialmente capaz de lançá-lo como ovelhas aos lobos. Foi assim que sujeitos indesejados pela sociedade e/ou com questões de saúde mental foram isolados num mundo à parte, vivendo atrás de muros e sendo vítimas das piores tendências manifestadas pelo ser humano, como aconteceu no manicômio Pinel e Barbacena (Sobre esse tema, sugerimos os filmes: Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodanzky, 2000) e Dá pra fazer/Si Puó Fare (Giulio Manfredonia, 2008), ambos disponíveis no Youtube)
Os manicômios foram palco de torturas, de negligência, de injustiças e da aniquilação dos sujeitos considerados desajustados… violências que agravaram seus estados através da institucionalização e da desterritorialização, calando suas existências e suas vontades. Até hoje essas vítimas encontram dificuldades para retomar suas vidas, necessitando do auxílio de políticas públicas e enfrentando desafios para conseguir se reconectar com sua própria história e, com sorte, poder ocupar espaços que antes lhe foram negados.
Dizer não aos manicômios e sua lógica simplista não é suficiente, não é solução por si só, mas sim o primeiro passo para inventar e criar novas formas de atenção à saúde mental.
Como conviver com os “loucos” na sociedade? O que vem depois de dizer não aos manicômios?
Como diz André Nader:
“[…] O desafio vem depois. Como estar diante da loucura, relacionar-se com ela, sustentar sua radical diferença, suas crises e sua inconstância? Qualquer pessoa que trabalha nessa área sabe que, nesse ponto, saímos do campo das respostas prontas e entramos para o das invenções. Ser antimanicomial não é apenas ser contra algo, mas, fundamentalmente, ser capaz de habitar o mundo tomando responsabilidades para si: sem a proteção dos muros e sem qualquer garantia de que aquilo que funciona um dia, funcionará no próximo.
Trata-se, por consequência, de um eterno processo de construção no qual as conquistas de um dia podem ser os perigos do dia seguinte. Pois bem, a democracia se faz de uma indeterminação equivalente a essa, bem como de uma constante invenção de respostas repletas de perigos — o que nos obriga a sempre repensá-las. A democracia é, portanto, antimanicomial. Fica como desafio aprofundarmos o significado dessa fórmula, evitando que ela seja rebaixada ao rol das respostas simples, rápidas e, portanto, violentas. Que o dezoito de Maio sirva para lembrarmos de seguir adiante com essa tarefa”
*Segundo Goffman (1987), as instituições totais se caracterizam por serem estabelecimentos fechados que funcionam em regime de internação, onde um grupo relativamente numeroso de internados vive em tempo integral. A vida nessas instituições acarretaria o que Goffman chamou de mortificação, ou seja, o sujeito acaba sendo anulado nesse convívio dando espaço apenas à vida institucional.
Bibliografia:
Nader, André. O não ao manicômio: fronteiras, estratégias e perigos. Benjamin Editorial, 2019.
Nader, André. Por uma Democracia Anti-manicomial: a alteridade é incontornável, o outro existe, o mundo é de todos e não há muro que nos liberte dessa responsabilidade <https://medium.com/@andrernader/por-uma-democracia-antimanicomial-1e1fcd3f8676>
Link para os filmes: