“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”
(Goethe citado por Freud, [1913] 1996: 160)
O que dá início a adolescência, se assim podemos dizer, é a separação que somos convocados a fazer em relação a nossos pais, ao universo familiar – atravessados que somos pelo tabu do incesto, pela Lei que não falha chegar até nós. Bem, adolescer é um processo conturbado e que faz marca porque é a hora e a vez da desconstrução da imagem idealizada que tínhamos de nossos pais. Como bem nos lembra Freud (1901-1905), dolorosamente vamos nos desprendendo da autoridade dos pais à medida que começamos a perceber falhas e defeitos neles (ou em qualquer pessoa que os represente).
“O amor a que tinha acesso, até então naturalmente, por ser filho de seus pais, mostra-se então sob outra luz, cabendo-lhe a responsabilidade de inventá-lo em outro lugar […]” (LACADÉE, 2011, p. 158).
Podemos falar de uma separação “razoável e saudável” indivíduo-família, na qual os laços com a mesma são afrouxados, em prol de interesses da sociedade e da civilização. E assim vamos cada vez mais frequentando o “mundo lá fora” e nos endereçando a uma gama cada vez maior de pessoas e instituições. Toda essa movimentação gera conflitos e angústias, principalmente se nos preocuparmos excessivamente (ou neuroticamente) com “fazer sempre a escolha certa” ou “agradar a todos”.
O efeito desse momento é o impulsionamento do sujeito para fora do universo familiar, ao mesmo tempo em que o prazer genital, bastante aflorado pelos hormônios sexuais, está a pleno vapor. Esse contexto engendra questões existenciais típicas de quem se vê expulso de um lugar que era seu, fosse ele bom ou ruim, e se encontra “solto” diante de uma multidão de acontecimentos e novidades. Como existir? Qual meu lugar no mundo?
Como o adolescente lidará com isso? Qual será sua margem de manobra entre os sobressaltos que surgem e a herança de sua infância? Arriscará toda sua vida ou saberá consentir com o sacrifício de uma parte de gozo que aí se mostra em jogo? (LACADÉE, 2011, p. 28).
Lidamos com conflitos cada vez mais complexos: passamos a pensar no que o Outro* quer (e pior, acreditamos que sabemos e que nisso moraria a felicidade) e morremos de angústia tentando ter ou ser aquilo que falta. Na adolescência, diferente da infância, já não estamos com problemas e queixas exclusivamente referenciadas à família, ao núcleo familiar, pois vamos sendo atravessados por outros elementos da vida e isso nos estimula a desejar e mirar além.
Descrevendo muito bem os ideais acerca da adolescência, Jerusalinsky sintetiza que:
“Adolescência é um tempo ao qual, em geral, as crianças querem chegar, os adultos querem retornar e do qual os adolescentes querem sair. As crianças querem chegar porque imaginam que poderão se livrar da tirania dos adultos. Os adultos querem voltar porque idealizam esse como o momento da vida em que ainda nada estava decidido e, portanto, poderiam – se retornassem – refazer suas escolhas. Os adolescentes – desmentindo essa idealização – querem sair justamente para se desvencilhar dessa pesada carga, que o discurso social lhes demanda, de se prepararem para realizar tudo o que até agora ninguém conseguiu realizar”. (Jerusalinsky)**
Esse momento nos convoca a lidar com nosso próprio sexo e o que vamos inventar a partir dele, ou seja, se vamos nos identificar com os ideais pensados pela sociedade para nosso sexo e opção sexual. Também nos convoca a lidar com o prazer genital e a existência do sexo oposto, agora já bastante consolidado como “oposto” em sua complexidade, carregado assim de expectativas sociais, discursos hegemônicos, preconceitos. Ufa! Quanta coisa para lidar. Como lembra Philipp Lacadée, essa é uma travessia necessária e, em sua profundidade, solitária, pois o adolescente “deve assumir, quase sempre sozinho, sua identidade sexual”.
É justamente nesse mar de angústias que visualizamos uma travessia em direção a algo interessante: o sexo, os relacionamentos interpessoais e amorosos, o “proibido”, as drogas, as identidades que podemos assumir para pertencer a um grupo e nos autoafirmar perante o espelho que vemos no outro. Agora o mundo fica maior e sua complexidade também; temos de responder de muitos lugares e para muitas pessoas e instituições. O jogo da vida começa de novo com outra magnitude.
Não é mera coincidência ser majoritariamente a juventude que se coloca no lugar de apontar as mazelas, os absurdos, o que não funciona no mundo. Tal fenômeno não se reduz a uma única coisa, mas se o adolescente é tão brutalmente confrontado com o Outro e com o mundo, a que ele deverá fazer parte, crescer e “vingar”, é bastante compreensível que o sujeito tente modificar o mundo em que está sendo lançado a viver e que lhe parece tão estrangeiro e hostil. Saídas subversivas também podem ocorrer, por que não?
[…] por estar ligada a algo do ‘desregramento de todos os sentidos’, [expressão que o autor toma de Rimbaud] é também o tempo da criação, da arte, o tempo em que o jovem sujeito tenta encontrar aquilo que de seu ser pode se traduzir à sua maneira […] (LACADÉE, 2011, p. 161).
O que cada um vai inventar para lidar com o mundo e aos poucos se situar em outros laços afetivos, contextos e alteridades para além da família e fora dela? O que ocorrerá aí é algo que podemos chamar de parto subjetivo… parir a si mesmo não parece uma metáfora exagerada…
É comum o tema da incerteza e a angústia de não saber como é que a vida acontece para os adultos, como eles conquistaram tantas coisas que parecem tão distantes e difíceis… Dinheiro? Casa própria? Amor correspondido?
A má notícia é que não há garantia nenhuma de que tudo vai dar certo da maneira que você espera. O que podemos fazer é elaborar nossas escolhas (as velhas e as novas), escutar o que tem dentro delas e o que temos a dizer sobre isso. Poder falar com algum analista sobre os impasses, dilemas e angústias desse momento, poderá tornar as escolhas mais leves, interessantes e menos ameaçadoras (caso venham a fracassar, ou caso tenham fracassado).
Fazendo uma analogia, é como se começássemos a adolescência com um objeto dismorfo no colo, objeto que veio de um Outro lugar, mas que nos interessou, ao mesmo tempo que não sabemos o que é, tampouco o que fazer com ele. Resta buscar emprestar a ele algum sentido e aos poucos ele vai mudando e ganhando algum tipo de forma, até que um dia nos damos conta de que agora temos no mesmo colo algo menos indecifrável, que já dá pra imaginar, brincar e pensar em aventuras. Tornar algo mais teu, sem esquecer de onde veio, partindo do fato de que sempre algo vai faltar, é a leveza que podemos encontrar no vazio, que apesar de angustiante e pesado, em seu avesso também pode nos tornar leves – ainda que para continuar lutando contra monstros (a boa notícia é que temos recompensa: os prazeres, os momentos de felicidade e uma vida interessante para viver).
Notas:
*Outro, com o maiúsculo, é um conceito psicanalítico lacaniano. Aqui, não se trata de um outro encarnado enquanto “pessoa”, mas da alteridade na qual somos “banhados” logo que nascemos, que vai ser material de trabalho e conteúdo do nosso inconsciente. O grande Outro é algo como todas as demandas e referências que recebemos do mundo externo e que nos atravessam e influenciam de alguma forma, enquanto nós vamos tentando lidar com tudo isso, nos posicionando e nos articulamos com esse material que nos é alteridade, mas que “banha” e participa de nossas vidas a todo instante. Tudo o que falamos, sentimos, agimos e até sonhamos existe a partir do Outro…
**No suplemento “Cultura” do jornal Zero Hora, do dia 10 de agosto de 2002.
Patrícia Andrade
CRP 06/139465
Psicóloga, psicanalista e membro da Rede Inconsciente Real
Bibliografia
FREUD, Sigmund. (1905). “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. Em: Obras completas. Volume 6. (Tradução de Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
QUINET, Antonio. Os Outros em Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
LACADÉE, P. O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2011.