Saúde mental, mal-estar e psicanálise. Nos últimos tempos, vimos a proliferação de uma discussão nos mais diversos setores sobre a temática concernente ao campo da saúde mental. Dentre os diversos assuntos pertencentes a este campo, um que se faz bastante presente é a concepção geral do que seria alguém possuir boa saúde mental. Em documento orientador a países componentes de seu bloco, a OMS¹ afirma que um indivíduo ser mentalmente saudável está articulado não apenas com a ausência de transtorno mentais – sejam eles de ordem psicológica ou psiquiátrica – mas também a fatores socioeconômicos, biológicos, de meio ambiente e de retorno da produtividade (força de trabalho) para com sua respectiva comunidade.
Desde a perspectiva da psicanálise, nos perguntamos o que é ter saúde mental na atualidade, em meio a um cenário político-econômico-social instável, agravado por uma situação de pandemia que escancara as três fontes do sofrimento humano apontadas por Freud² em “Mal-estar na civilização”. A saber, nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; o mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, nossos relacionamentos com os outros. Sendo esta última fonte, apontada, como a mais dolorosa entre todas. Nesta obra, o autor recolhe que a tentativa que o humano faz de realizar diversos feitos e progressos é tão somente um esforço em se afastar dos sentimentos infelizes. Podemos interpretar tal ação, como a tentativa de uma conciliação entre o que vem a ser reivindicado tanto por cada sujeito quanto pela vida coletiva. Ambos possuem interesses distintos. Ainda em “Mal-estar”, Freud afirma que o ser humano pode vir a empreender três comportamentos distintos frente ao mal-estar causado pelo atrito sujeito x vida coletiva: uns preferem apostar nos relacionamentos emocionais com outras pessoas – mesmo sendo estes, conforme vimos anteriormente, uma fonte de sofrimento, outros tendem a ser autossuficientes buscando suas satisfações em processos mentais internos e um outro grupo empreende ações onde podem testar sua força. Embora existam estas tentativas, na sentença freudiana, há algo da ordem de um mal-estar, que não nos abandonará. Tal princípio vai na contramão de práticas que prometem felicidade plena e absoluta, sendo que o próprio funcionamento da vida coletiva pede que as pulsões de todos não sejam totalmente satisfeitas. De alguma forma, essa porção de não-realização pode vir a retornar como mal-estar.
Dentre alguns dos elementos comuns nos casos clínicos, figura a exacerbação do sentimento de inadequação por parte do sujeito que, por vezes, resulta em dificuldades de manejo com sua própria angústia. Tais situações nos remetem a Freud, com o fenômeno do mal-estar na civilização e seus efeitos para cada sujeito. A chegada de casos com diversas demandas de tratamento e acompanhamento alojadas na perspectiva do campo clínico da saúde mental. Depressão, ansiedade, cutting e outros, são alguns dos nomes na boca dos sujeitos para dizerem do seu sofrimento singular, que embora encontre algum nível de nomeação pela via diagnóstica padrão também esbarram em um algo de cada um não-possível de nomear completamente.
O discurso analítico não encontra eco numa prática em saúde mental que pretende “garantir” a todos e que pode vir a estar (mesmo que sem um objetivo direto nisso) aliada a uma prática que irá produzir manobras de engodo subjetivo. Izaguirre³ localiza que os pilares conceituais do campo da saúde mental, originaram-se no ocidente a partir da burguesia, sob o nome de modernidade. Baseados numa ideia do desenvolvimento indefinido do homem sobre a natureza e determinado pela supremacia da razão, próprios da era do Iluminismo. Vimos tal supremacia encontrar seu limite em fins do século XIX, a partir do limite ideológico de que o homem é determinado de maneira absoluta pela razão, portanto, pela consciência. É neste cenário que vemos surgir a psicanálise. Freud⁴ ao diagnosticar que o homem não é senhor em sua própria casa, abre – o que ele mesmo considera ser – uma terceira ferida narcísica (as outras duas abertas por Copérnico e Darwin) em um saber até então pretenso completo: cogito ergo sum (Penso, logo sou). E diz, a seu modo, que há algo sobre o funcionamento humano que nos é desconhecido: o inconsciente. A prática analítica vem desde sua origem, debruçando-se sobre esta porção do humano (e isto inclui o sofrimento) que em Lacan⁵ podemos ler sendo da ordem de um saber que não se sabe. Saber este que escapa à consciência humana, que não se enquadra e não cede totalmente às nomenclaturas impostas pela civilização. Isto é paradoxal, pois mesmo que em alguma dimensão o sujeito possa valer-se de garantias prometidas por certas práticas em saúde mental, a dimensão do mal-estar estrutural jamais é dominado ou exterminado da vida do sujeito podendo vir a ressurgir, sob diversas facetas. Tal fenômeno marca a impossibilidade de garantia que o discurso do capitalista aliado a certas práticas tenta propor: a existência de um único e permanente bem-estar a todos. Vemos em Freud, que se por um lado, não podemos eliminar todo o sofrimento oriundo da própria condição humana, podemos inventar modos de lidar com ele tornando-o menos intenso.
Trata-se aqui de pensar uma prática em saúde mental articulada ao exercício de abarcar o surgimento de um sujeito que, na concepção lacaniana⁶, pensa-se onde não é e é onde não se pensa. Em tal abordagem o campo da saúde mental tem efeitos singulares que reverberam no coletivo, pois conforme a experiência singular de cada análise prossegue, o sujeito percebe os efeitos de diminuição de seu sofrimento psíquico frente ao mal-estar estrutural. Possibilitando que cada sujeito possa estar na civilização em uma posição repensada e um pouco mais avisada de seu funcionamento. Em uma rápida e breve articulação, em psicanálise, pensar saúde mental é também pensar a inclusão do mal-estar de cada um na dimensão da clínica. A clínica que não é sem ética. Ética que não é sem o desejo de cada um.
Jefferson Nascimento
Psicanalista, membro da rede Inconsciente Real e do grupo de estudos “Prática Clínica”.
Referências Bibliográficas
1- https://www.who.int/en/news-room/fact-sheets/detail/mental-health-strengthening-our-response
2- FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930 [1929]). In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 75-254. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).
3- IZAGUIRRE, G. (1999). Salud mental: definiciones. In: Salud mental y psicoanálisis (Yospe, J., Izaguirre, G. y colaboradores), pp. 245-251. Buenos Aires: Eudeba.
4- FREUD, S. (1976) Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In:___. Uma neurose infantil e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.171-179. (Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17)
5- LACAN, J. (1992) O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar
6- LACAN, J. (1998). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. Em J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.