Chiste: O riso e a dor de (r)existir

“Por que então esta mania danada,
esta preocupação de falar tão sério,
de parecer tão sério, de ser tão sério,
de sorrir tão sério, de chorar tão sério,
de brincar tão sério, de amar tão sério?
Ai, meu Deus do céu, vai ser sério assim no inferno!”

Tom Zé

 

Em tempos como esse, a resposta à pergunta “tudo bem?” é cada vez menos retórica. A cada vez que nos deparamos com essa pergunta, parece que a cordialidade de um simples “tudo bem e você?” fica embolado em algum lugar entre as reações e os sentimentos causados pela pandemia, pelo agravamento da desigualdade social, pelo isolamento, pelo racismo estrutural, pela necropolítica do governo atual e pela mais profunda incerteza dos amanhãs. E por aí vai…

Se por um lado, é um sinal da gravidade do atual momento, por outro a urgência nos coloca diante da tragicidade da vida, o que nos possibilita re-agir sobre ela. A dimensão trágica carrega, mais-além do horror, algo daquilo que Freud chamou de estranho, inquietante, ideia que carrega sempre uma ambivalência entre o desconhecido e o familiar. Mas que reação é possível quando muito do que se supunha sólido parece ruir?

O que fazer diante da condição trágica da vida humana, da nossa dor de existir?
Dentre tantas respostas possíveis, o riso não costuma ser listado, nem ao menos lembrado, coitado.

Mas o riso insiste. Resiste. Principalmente quando ele é efeito daquilo que chamamos de chiste, que é o riso que faz laço. O chiste é algo da ordem de um gracejo, um dito espirituoso, algo que convoca aquele que o ouve, e cabe a este último validá-lo – ou não, para alcançar a meta de obtenção de prazer a partir dessa anuência. Diferente do que é simplesmente cômico, em que é possível rir sozinho e tem um alcance limitado, além de ser regido pela consciência, e ser passível de controle. O chiste, assim como sonhos, lapsos, atos falhos e sintomas, é uma manifestação inconsciente e comunica muito mais pelo que não diz do que pelo que diz, sendo a única que é, no limite, social na medida em que o outro é imprescindível para que exista e emerge apenas a partir do laço social.

Neste riso que faz laço não sabemos muito bem do que rimos. Não de imediato, como toda manifestação inconsciente, da mesma forma que durante o percurso de uma análise toda e qualquer intervenção é sempre uma aposta, na qual seus efeitos se dão a posteriori. Assim sendo, esse não-saber consciente guarda algum saber valioso relacionado a uma verdade sobre o sujeito, tanto do que faz o chiste quanto daquele que ri.

O isolamento social, em maior ou menor medida, desloca as relações e suas dinâmicas de funcionamento, afetando inclusive o acesso a via do chiste, tornando muitas vezes, o encontro mais árido e cansativo, este último ponto não raro de escutarmos na clínica durante a pandemia. Ainda que todo encontro pressuponha também um desencontro, o tom espontâneo de uma conversa com amigos, familiares, colegas de trabalho, o toma-lá-dá-cá em que se tece em conjunto infinitos caminhos discursivos, encontra barreiras adicionais no encontro das videochamadas. A restrição do simples e despretensioso, afinal é preciso tomar a decisão de ligar ou de atender a uma chamada, o delay da conexão, o desencontro incontornável dos olhares, a particularidade dos silêncios, e a presença da própria imagem atravessando a cena, são elementos novos que compõem as relações, e produzem efeitos em cada um. Rearranjar os laços em novos formatos para que caibam em sua inteireza e se sustentem de outro jeito, e suportem o vazio da pandemia pode vir a ser um desafio significativo. E fundamental, na medida que propicia o chiste que traz em si, simultaneamente, a possibilidade do encontro consigo e com o outro.

Freud, ao conceituar os chistes em 1905, coloca o aspecto espontâneo, quase incontrolável que o sujeito sente de fazer o chiste, no momento em que ele surge no pensamento em uma conversa. O riso que faz laço não pede licença. O inconsciente não pede licença. Em tempos de isolamento social, espaços para espontaneidade dos vínculos ficam, muitas vezes, prejudicados ou subestimados. A nossa dor de existir é suportável e possível única e exclusivamente pelo “nós”, sem o qual não existe “eu”, assim como não existe psicanálise fora da relação transferencial analista-analisante. Re-construir narrativas, estratégias individuais ou coletivas, se for a partir do encontro com o outro, enseja a emergência do riso do chiste e sua potência de r-existir, na medida em que carrega um saber singular do sujeito do inconsciente e do laço social.

 

Juliana Camargo

Psicanalista e psicóloga, especialista em saúde mental pela UNIFESP e membro da rede Inconsciente Real

 

 

Referências bibliográficas

FREUD, S. (1905/2017) O chiste e sua relação com o inconsciente. Obras Completas. Volume 7. São Paulo: Companhia das Letras.

FREUD, S. (1919/2010) O Inquietante. Obras Completas. Volume 14. São Paulo: Companhia das Letras.

FREUD, S. (1930/2010) O Mal-estar na Cultura. Coleção L&PM Pocket, volume 850. Porto Alegre: L&PM Ed.

LACAN, J. (1998) O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Seminário original de 1957-1958)

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.B. (2001). Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.

ROSA, M.D. (2009) Viver em tempos sombrios: do gozo à experiência compartilhada. Revista Leitura Flutuante, volume 1. Disponível em:

<https://www.pucsp.br/cespuc/revistas/volume2/textoLeituraFlutuante_2-1.pdf> Acesso em 06/08/20.

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